sábado, 31 de dezembro de 2022

O Natal do Senhor é o Natal da paz

Dos Sermões de São Leão Magno, papa

(Sermo 6 in Nativitate Domini, 2-3, 5: PL 54, 213-216)

(Séc. V)

O Natal do Senhor é o Natal da paz

O estado de infância, que o Filho de Deus assumiu sem considerá-la indigna de sua grandeza, foi-se desenvolvendo com a idade até chegar ao estado de homem perfeito e, tendo-se consumado o triunfo de sua paixão e ressurreição, todas as ações próprias do seu estado de aniquilamento que aceitou por nós tiveram o seu fim e pertencem ao passado. Contudo, a festa de hoje renova para nós os primeiros instantes da vida sagrada de Jesus, nascido da Virgem Maria. E enquanto adoramos o nascimento de nosso Salvador, celebramos também o nosso nascimento.

Efetivamente, a geração de Cristo é a origem do povo cristão; o Natal da Cabeça é também o natal do Corpo. Embora cada um tenha sido chamado num momento determinado para fazer parte do povo do Senhor, e todos os filhos da Igreja sejam diversos na sucessão dos tempos, a totalidade dos fiéis, saída da fonte batismal, crucificada com Cristo na sua Paixão, ressuscitada na sua Ressurreição e colocada à direita do Pai na sua Ascensão, também nasceu com ele neste Natal.

Todo homem que, em qualquer parte do mundo, acredita e é regenerado em Cristo, liberta-se do vínculo do pecado original e, renascendo, torna-se um homem novo. Já não pertence à descendência de seu pai segundo a carne, mas à linhagem do Salvador, que se fez Filho do homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus.

Se ele não tivesse descido até nós na humildade da natureza humana, ninguém poderia, por seus próprios méritos, chegar até ele.

Por isso, a grandeza desse dom exige de nós uma reverência digna de seu valor. Pois, como nos ensina o santo Apóstolo, nós não recebemos o espírito do mundo, mas recebemos o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos os dons da graça que Deus nos concedeu (1Cor 2,12). O único modo de honrar dignamente o Senhor é oferecer-lhe o que ele mesmo nos deu.

Ora, no tesouro das liberalidades de Deus, que podemos encontrar de mais próprio para celebrar esta festa do que a paz, que o canto dos anjos anunciou em primeiro lugar no nascimento do Senhor?

É a paz que gera os filhos de Deus e alimenta o amor; ela é a mãe da unidade, o repouso dos bem-aventurados e a morada da eternidade; sua função própria e seu benefício especial é unir a Deus os que ela separa do mundo.

Assim, aqueles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo (Jo 1,13), ofereçam ao Pai a concórdia dos filhos que amam a paz, e todos os membros da família adotiva de Deus se encontrem naquele que é o Primogênito da nova criação, que não veio para fazer a sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou. Pois a graça do Pai não adotou como herdeiros pessoas que vivem separadas pela discórdia ou oposição, mas unidas nos mesmos sentimentos e no mesmo amor. É preciso que tenham um coração unânime os que foram recriados segundo a mesma imagem.

O Natal do Senhor é o natal da paz. Como diz o Apóstolo, Cristo é a nossa paz, ele que de dois povos fez um só (cf. Ef 2,14); judeus ou gentios, em um só Espírito, temos acesso junto ao Pai (Ef 2,18).

domingo, 25 de dezembro de 2022

Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade


Dos Sermões de São Leão Magno, papa

(Sermo 1 in Nativitate Domini, 1-3: PL 54, 190-193)
(Séc. V)

Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade

Hoje, amados filhos, nasceu o nosso Salvador. Alegremo-nos. Não pode haver tristeza no dia em que nasce a vida; uma vida que, dissipando o temor da morte, enche-nos de alegria com a promessa da eternidade.

Ninguém está excluído da participação nesta felicidade. A causa da alegria é comum a todos, porque nosso Senhor, vencedor do pecado e da morte, não tendo encontrado ninguém isento de culpa, veio libertar a todos. Exulte o justo, porque se aproxima da vitória; rejubile o pecador, porque lhe é oferecido o perdão; reanime-se o pagão, porque é chamado à vida.

Quando chegou a plenitude dos tempos, fixada pelos insondáveis desígnios divinos, o Filho de Deus assumiu a natureza do homem para reconciliá-lo com o seu Criador, de modo que o demônio, autor da morte, fosse vencido pela mesma natureza que antes vencera.

Eis por que, no nascimento do Senhor, os anjos cantam jubilosos: Glória a Deus nas alturas; e anunciam: Paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14). Eles vêem a Jerusalém celeste ser formada de todas as nações do mundo. Diante dessa obra inexprimível do amor divino, como não devem alegrar-se os homens, em sua pequenez, quando os anjos, em sua grandeza, assim se rejubilam?

Amados filhos, demos graças a Deus Pai, por seu Filho, no Espírito Santo; pois, na imensa misericórdia com que nos amou, compadeceu-se de nós. E quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo (Ef 2,5) para que fôssemos nele uma nova criação, nova obra de suas mãos.

Despojemo-nos, portanto, do velho homem com seus atos; e tendo sido admitidos a participar do nascimento de Cristo, renunciemos às obras da carne.

Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade. E já que participas da natureza divina, não voltes aos erros de antes por um comportamento indigno de tua condição. Lembra-te de que cabeça e de que corpo és membro. Recorda-te que foste arrancado do poder das trevas e levado para a luz e o reino de Deus.

Pelo sacramento do batismo te tornaste templo do Espírito Santo. Não expulses com más ações tão grande hóspede, não recaias sob o jugo do demônio, porque o preço de tua salvação é o sangue de Cristo.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Denúncia dos pecados


Da Segunda Carta de São Pedro 2,9-22

Denúncia dos pecados

Caríssimos: 9O Senhor sabe livrar os homens piedosos da provação e reservar os malvados para os castigar no dia do juízo, 10especialmente os que seguem a carne, levados por suas paixões impuras, e desprezam a dignidade do Senhor.

Atrevidos, presunçosos, não receiam maldizer os seres gloriosos, 11enquanto os anjos, superiores em força e poder, não proferem ante o Senhor sentenças injuriosas contra eles. 12Como animais irracionais, por natureza destinados a caírem em armadilha e apodrecerem, estas pessoas, que blasfemam contra o que não conhecem, vão apodrecer na sua própria corrupção. 13Receberão a paga da sua injustiça, essa gente que faz do prazer sua delícia em pleno dia, que se deleita em imoralidades e perversões, e que se banqueteia convosco. 14Estão sempre olhando por algum adultério, são insaciáveis no pecar. Seduzem aqueles que são inconstantes e têm o coração exercitado na avareza. São filhos da maldição. 15Deixaram o caminho certo, para se transviarem pelo caminho de Balaão, filho de Bosor, que buscava enriquecer-se com a injustiça, 16mas foi repreendido por sua desobediência: um animal mudo começou a falar com voz humana e impediu o plano insensato do profeta. 17Essa gente são fontes sem água, nuvens impelidas pelo furacão. Espessa escuridão é a que os espera. 18Vociferam discursos pomposos, mas vazios. Pela dissolução nos desejos carnais, seduzem aqueles que, há pouco, abandonaram a vida desvairada. 19Prometem-lhes a liberdade, enquanto eles mesmos continuam escravos da corrupção. Pois cada um é escravo de quem o domina.

20 Se uma vez escaparam das corrupções do mundo, conhecendo nosso Senhor e salvador Jesus Cristo, mas de novo se deixaram enredar e dominar, então seu estado final é pior que o do começo. 21Melhor teria sido se não tivessem conhecido o caminho da justiça, do que depois de conhecê-lo abandonar o santo preceito que lhes fora transmitido. 22Neles se verifica o que com verdade diz o provérbio:

"O cão volta para seu próprio vômito, e: "Apenas lavada, a porca torna a revolver-se na lama".

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Aquela que acreditou em virtude da fé,também pela fé concebeu


Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo

(Sermo 25,7-8: PL 46,937-938)
(Séc. V)


Aquela que acreditou em virtude da fé,
também pela fé concebeu

Prestai atenção, rogo-vos, naquilo que Cristo Senhor diz, estendendo a mão para seus discípulos: Eis minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de meu Pai que me enviou, este é meu irmão, irmã e mãe (Mt 12,49-50). Acaso não fez a vontade do Pai a Virgem Maria, que creu pela fé, pela fé concebeu, foi escolhida dentre os homens para que dela nos nascesse a salvação e que foi criada por Cristo antes que Cristo nela fosse criado? Sim! Ela o fez! Santa Maria fez totalmente a vontade do Pai e por isto mais valeu para ela ser discípula de Cristo do que mãe de Cristo; maior felicidade gozou em ser discípula do que mãe de Cristo. Assim Maria era feliz porque, já antes de dar à luz o Mestre, trazia-o na mente.
Vede se não é assim como digo. O Senhor passava acompanhado pelas turbas, fazendo milagres divinos, quando certa mulher exclamou: Bem-aventurado o seio que te trouxe. Feliz o ventre que te trouxe! (Lc 11,27) O Senhor, para que não se buscasse a felicidade na carne, que respondeu então? Muito mais felizes os que ouvem a palavra de Deus e a guardam (Lc 11,28). Por conseguinte, também aqui é Maria feliz, porque ouviu a palavra de Deus e a guardou. Guardou a verdade na mente mais do que a carne no seio. Verdade, Cristo; carne, Cristo; a verdade-Cristo na mente de Maria; a carne-Cristo no seio de Maria. É maior o que está na mente do que o trazido no seio.
Santa Maria, feliz Maria! Contudo, a Igreja é maior que a Virgem Maria. Por quê? Porque Maria é porção da Igreja, membro santo, membro excelente, membro supereminente, mas membro do corpo total. Se ela pertence ao corpo total, logo é maior o corpo que o membro. A cabeça é o Senhor; e o Cristo total, é a cabeça e o corpo. Que direi? Temos cabeça divina, temos Deus por cabeça!

Portanto, irmãos, dai atenção a vós mesmos. Também vós sois membros de Cristo, também vós sois corpo de Cristo. Vede de que modo o sois. Diz: Eis minha mãe e meus irmãos (Mt 12,49). Como sereis mãe de Cristo? Todo aquele que ouve e faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão e irmã e mãe (cf. Mt 12,50). Pensai: entendo irmão, entendo irmã; é uma só a herança, e é essa a misericórdia de Cristo que, sendo único, não quis ficar sozinho; quis que fôssemos herdeiros do Pai, co-herdeiros seus.

domingo, 20 de novembro de 2022

Venha o teu reino


Do Opúsculo sobre a Oração, de Orígenes, presbítero

(Cap. 25: PG 11,495-499)
(Séc. III)

Venha o teu reino

O Reino de Deus, conforme as palavras de nosso Senhor e Salvador, não vem visivelmente, nem se dirá: Ei-lo aqui ou ei-lo ali; mas o reino de Deus está dentro de nós (cf. Lc 17,21), pois a palavra está muito próxima de nossa boca e em nosso coração (cf. Rm 10,8). Donde se segue, sem dúvida nenhuma, que quem reza pedindo a vinda do reino de Deus pede – justamente por já ter em si um início deste reino – que ele desponte, dê frutos e chegue à perfeição. Pois Deus reina em todo o santo e quem é santo obedece às leis espirituais de Deus, que nele habita como em cidade bem administrada. Nele está presente o Pai e, junto com o Pai, reina Cristo na pessoa perfeita, segundo as palavras: Viremos a ele e nele faremos nossa morada (Jo 14,23).

Então o reino de Deus, que já está em nós, chegará por nosso contínuo adiantamento à plenitude, quando se completar o que foi dito pelo Apóstolo: sujeitados todos os inimigos, Cristo entregará o reino a Deus e Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos (cf. 1Cor 15,24.28). Por isto, rezemos sem cessar, com aquele amor que pelo Verbo se faz divino; e digamos a nosso Pai que está nos céus: Santificado seja teu nome, venha o teu reino (Mt 6,9-10). É de se notar também a respeito do reino de Deus: da mesma forma que não há participação da justiça com a iniqüidade nem sociedade da luz com as trevas nem pacto de Cristo com Belial (cf. 2Cor 6,14-15), assim o reino de Deus não pode subsistir junto com o reino do pecado. Por conseguinte, se queremos que Deus reine em nós, de modo algum reine o pecado em nosso corpo mortal (Rm 6,12), mas mortifiquemos nossos membros que estão na terra (cf. Cl 3,5) e produzamos fruto no Espírito.

Passeie, então, Deus em nós como em paraíso espiritual, e reine só ele, junto com seu Cristo; e que em nós se assente à destra de sua virtude espiritual, objeto de nosso desejo. Assente-se até que seus inimigos todos que existem em nós sejam reduzidos a escabelo de seus pés (Sl 109,1), lançados fora todo principado, potestade e virtude. Tudo isto pode acontecer a cada um de nós e ser destruída a última inimiga, a morte (1Cor 15,26). E Cristo diga também dentro de nós: Onde está, ó morte, teu aguilhão? Onde está, inferno, tua vitória? (1Cor 15,55; cf. Os 13,14). Já agora, portanto, o corruptível em nós se revista de santidade e de incorruptibilidade, destruída a morte, vista a imortalidade paterna (cf. 1Cor 15,54), para que, reinando Deus, vivamos dos bens do novo nascimento e da ressurreição.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Pedro e Paulo, germes da semente divina


Dos Sermões de São Leão Magno, papa

(Sermo 82, in natali apostolorum Petri et Pauli 1,6-7: PL 54,426-428)
(Séc. V)

Pedro e Paulo, germes da semente divina

É preciosa aos olhos do Senhor a morte de seus santos (Sl 115,15), e nenhuma crueldade pode destruir a religião fundada no mistério da cruz de Cristo. A Igreja não diminui pelas perseguições; pelo contrário, cresce. O campo do Senhor se reveste de messes sempre mais ricas, porque os grãos, que caem um a um, nascem multiplicados.
Em quantos rebentos estes dois excelentes germes da divina semente brotaram são testemunhas os milhares de santos mártires que, rivais das vitórias apostólicas, envolveram com uma multidão coberta de púrpura nossa Urbe e a coroaram com um diadema de glória, cravejado de muitas pedras preciosas.
Temos de alegrar-nos sumamente, caríssimos, com a comemoração de todos os santos por esta proteção, preparada por Deus, para exemplo e confirmação da fé. Mas, em vista da excelência destes patronos, é justo que os glorifiquemos com ainda maior exultação, porque a graça de Deus, dentre todos os membros da Igreja, os elevou ao cume. Por isso, no corpo, cuja cabeça é Cristo, constituem como que os dois olhos.
Não devemos pensar que os seus méritos e virtudes acima de toda a expressão sejam diferentes de algum modo ou tenham algo de peculiar, pois a eleição divina os tornou pares, o trabalho assemelhou-os e o fim da vida os igualou.
Por experiência pessoal e pela afirmação de nossos antepassados, cremos e confiamos que, nas lutas da vida, temos sempre a intercessão destes especiais padroeiros para obter a misericórdia de Deus; e por mais abatidos que estejamos pelos próprios pecados, somos reerguidos pelos méritos apostólicos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

O serviço especial do nosso ministério


Dos Sermões de São Leão Magno, papa

(Sermo 4,1-2: PL 54,148-149)
(Séc. V)

O serviço especial do nosso ministério

Embora seja a Igreja de Deus toda ela ordenada em distintos graus, de forma a subsistir a integridade nos diversos membros do Corpo sagrado, todos, no entanto, no dizer do Apóstolo, em Cristo, somos um (cf. Gl 3,28). Ninguém está tão separado do outro pelo ofício, que até a mínima porção não pertença à conexão da cabeça. De fato, na unidade da fé e do batismo, nossa sociedade não conhece discriminações e é geral a dignidade, segundo a palavra do santo apóstolo Pedro: Quais pedras vivas deixai-vos edificar como casas espirituais, um sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais aceitos de Deus por Jesus Cristo (1Pd 2,5); e depois: Vós, porém, raça eleita e sacerdócio real, nação santa, povo adquirido (1Pd 2,9).

A todos os renascidos em Cristo o sinal da cruz torna reis, a unção do Espírito Santo consagra sacerdotes. Por isso, afora o especial serviço de nosso ministério, saibam todos os cristãos espirituais e racionais serem consortes da raça real e do ofício sacerdotal. Que de mais régio do que ser o espírito submisso a Deus, senhor de seu corpo? E que de mais sacerdotal do que entregar ao Senhor a consciência pura e oferecer as hóstias imaculadas da piedade no altar do coração? Sendo obra, pela graça de Deus, comum a todos, contudo, é piedoso e louvável de vossa parte alegrar-vos, como honra vossa, pelo dia de nossa elevação. Que se celebre no Corpo todo da Igreja o único sacramento do sacerdócio. Ao derramar-se o ungüento da consagração, este sacramento derramou-se certamente com mais abundância nos membros superiores, mas não com menor liberalidade nos inferiores.

Havendo assim, diletíssimos, pela participação neste dom, grande motivo de alegria em comum, haverá mais verdadeira e mais excelente causa de júbilo, se não pararmos na consideração de nossa pequenez. Com efeito muito mais vantajoso e mais digno será erguermos a força do espírito para contemplar a glória do santíssimo apóstolo Pedro; e, de preferência, neste dia venerar aquele que foi abundantemente regado pela fonte mesma dos carismas, para que, tendo recebido sozinho, nada seja transmitido a alguém sem sua participação. O Verbo feito carne já habitava entre nós. Cristo já se tinha entregado totalmente para restaurar o gênero humano.

domingo, 6 de novembro de 2022

Apressemo-nos ao encontro dos irmãos que nos esperam


Dos Sermões de São Bernardo, abade

(Sermo 2: Opera omnia, Edit. Cisterc. 5[1968],364-368)
(Séc. XII)

Apressemo-nos ao encontro dos irmãos que nos esperam


Para que louvar os santos, para que glorificá-los? Para que, enfim, esta solenidade? Que lhes importam as honras terrenas, a eles que, segundo a promessa do Filho, o mesmo Pai celeste glorifica? De que lhes servem nossos elogios? Os santos não precisam de nossas homenagens, nem lhes vale nossa devoção. Se veneramos os Santos, sem dúvida nenhuma, o interesse é nosso, não deles. Eu por mim, confesso, ao recordar-me deles, sinto acender-se um desejo veemente.

Em primeiro lugar, o desejo que sua lembrança mais estimula e incita é o de gozarmos de sua tão amável companhia e de merecermos ser concidadãos e comensais dos espíritos bem-aventurados, de unir-nos ao grupo dos patriarcas, às fileiras dos profetas, ao senado dos apóstolos, ao numeroso exército dos mártires, ao grêmio dos confessores, aos coros das virgens, de associar-nos, enfim, à comunhão de todos os santos e com todos nos alegrarmos. A assembleia dos primogênitos aguarda-nos e nós parecemos indiferentes! Os santos desejam-nos e não fazemos caso; os justos esperam-nos e esquivamo-nos. Animemo-nos, enfim, irmãos. Ressuscitemos com Cristo. Busquemos as realidades celestes. Tenhamos gosto pelas coisas do alto. Desejemos aqueles que nos desejam. Apressemo-nos ao encontro dos que nos aguardam. Antecipemo-nos pelos votos do coração aos que nos esperam. Seja-nos um incentivo não só a companhia dos santos, mas também a sua felicidade. Cobicemos com fervoroso empenho também a glória daqueles cuja presença desejamos. Não é má esta ambição nem de nenhum modo é perigosa a paixão pela glória deles.

O segundo desejo que brota em nós pela comemoração dos santos consiste em que Cristo, nossa vida, tal como a eles, também apareça a nós e nós juntamente com ele apareçamos na glória. Enquanto isto não sucede, nossa Cabeça não como é, mas como se fez por nós, se nos apresenta. Isto é, não coroada de glória, mas com os espinhos de nossos pecados. É uma vergonha fazer-se de membro regalado, sob uma cabeça coroada de espinhos. Por enquanto a púrpura não lhe é sinal de honra, mas de zombaria. Será sinal de honra quando Cristo vier e não mais se proclamará sua morte, e saberemos que nós estamos mortos com ele, e com ele escondida nossa vida. Aparecerá a Cabeça gloriosa e com ela refulgirão os membros glorificados, quando transformar nosso corpo humilhado, configurando-o à glória da Cabeça, que é ele mesmo. Com inteira e segura ambição cobicemos esta glória. Contudo para que nos seja lícito esperá-la e aspirar a tão grande felicidade, cumpre-nos desejar com muito empenho a intercessão dos santos. Assim, aquilo que não podemos obter por nós mesmos, seja-nos dado por sua intercessão.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Morramos com Cristo, para vivermos com ele


Do Livro sobre a morte de seu irmão Sátiro, de Santo Ambrósio, bispo

(Lib. 2,40.41.46.47.132.133: CSEL 73,270-274.323-324)
(Séc. IV)


Morramos com Cristo, para vivermos com ele

Percebemos que a morte é lucro, e a vida, castigo. Por isso Paulo diz: Para mim, viver é Cristo, e morrer é lucro (Fl 1,21). Como unir-se a Cristo, espírito da vida, senão pela morte do corpo? Morramos então com ele, para com ele vivermos. Morramos diariamente no desejo e em ato, para que, por esta segregação, nossa alma aprenda a se subtrair das concupiscências corporais. Que ela, como se já estivesse nas alturas, onde não a alcançam os desejos terrenos, aceite a imagem da morte para não incorrer no castigo da morte. Pois a lei da carne luta contra a lei do espírito e apóia-se na lei do erro. Mas qual o remédio? Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24) A graça de Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor (cf. Rm 7,25s). Temos o médico, usemos o remédio. Nosso remédio é a graça de Cristo, e corpo de morte é o nosso corpo. Portanto afastemo-nos do corpo e não se afaste de nós o Cristo! Embora ainda no corpo, não lhe obedeçamos, não abandonemos as leis naturais, mas prefiramos os dons da graça. E que mais? Pela morte de um só, o mundo foi remido. Cristo, se quisesse, poderia não ter morrido. Não julgou, porém, dever fugir da morte como coisa inútil nem que nos salvaria melhor, evitando a morte. Com efeito, sua morte é a vida de todos. Somos marcados com sua morte, ao orar anunciamos sua morte, ao oferecer o sacrifício pregamos sua morte. Sua morte é vitória, é sacramento, é a solenidade anual do mundo.

Não diremos ainda mais sobre a sua morte, se provarmos pelo exemplo divino que dela resultou a imortalidade, e que a morte se redimiu a si mesma? Não se deve lastimar a morte, que é causa da salvação do povo. Não se deve fugir da morte, que o Filho de Deus não rejeitou, e da qual não fugiu. Na verdade, a morte não era da natureza, mas converteu-se em natureza. No princípio, Deus não fez a morte, mas deu-a como remédio. Pela prevaricação, condenada ao trabalho de cada dia e ao gemido intolerável, a vida dos homens começou a ser miserável. Era preciso dar fim aos males, para que a morte restituísse o que a vida perdera. Pois a imortalidade seria mais penosa que benéfica, se não fosse promovida pela graça. Por isso, tem o espírito de afastar-se logo da vida tortuosa e das nódoas do corpo terreno, e lançar-se para a celeste assembleia, embora pertença só aos santos lá chegar, e cantar a Deus o louvor, descrito no livro profético, que os citaristas cantam: Grandes e maravilhosas tuas obras, Senhor Deus onipotente; justos e verdadeiros teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temeria e não glorificaria teu nome? Porque só tu és santo; todos os povos irão e se prostrarão diante de ti (Ap 15,3-4). Contemplar também, ó Jesus, tuas núpcias, nas quais a esposa, ao canto jubiloso de todos, é conduzida da terra ao céu – a ti virá toda carne (Sl 64,3) – já não mais manchada pelo mundo, mas unida ao espírito. Era isto que o santo Davi desejava, acima de tudo, contemplar e admirar, quando dizia: Uma só coisa pedi ao Senhor, a ela busco: habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida e ver as delícias do Senhor (Sl 26,4).

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Anunciamos Cristo crucificado


Das Cartas de São Paulo da Cruz, presbítero

(Epist. 1,43; 2,440.825)
(Séc. XVIII)

Anunciamos Cristo crucificado

Coisa excelente e muito santa é pensar e meditar sobre a Paixão do Senhor, pois por este caminho chegamos à união com Deus. Nesta escola tão santa aprende-se a verdadeira sabedoria. Foi aí que todos os santos a estudaram. Quando, pois, a cruz de nosso bom Jesus lançar raízes mais profundas em vosso coração, então cantareis: seja “Sofrer e não morrer”; seja “Ou sofrer ou morrer”, seja, ainda melhor, “Nem sofrer nem morrer, apenas a perfeita conversão à vontade de Deus”.
O amor é força de união e faz seus os tormentos do Bem muito amado. Este fogo vai até à medula, converte o que ama no amado. De modo mais profundo, o amor se mistura à dor, e a dor, ao amor. Há, então, uma mistura de amor e de dor tão estreita que não se pode separar o amor da dor, nem a dor, do amor. Por isto, quem ama se alegra com sua dor, e exulta em seu amor sofredor.
Sede, portanto, constantes na prática de todas as virtudes, imitando, de modo particular, o suave Jesus padecente, porque é isto o cume do puro amor. Procedei de modo que todos reconheçam que trazeis não só interior, mas ainda exteriormente, a imagem de Cristo crucificado, modelo de toda doçura e mansidão. Quem está interiormente unido ao Filho do Deus vivo, revela no exterior sua imagem pelo contínuo exercício da virtude heróica, principalmente pela paciência cheia de força que nem em segredo nem em público se queixa. Portanto, escondei-vos em Jesus crucificado, sem desejar coisa alguma a não ser que todos em tudo aceitem sua vontade.
Verdadeiros amigos do Crucificado, celebrareis sempre no templo interior a festa da cruz, suportando em silêncio, sem vos apoiar em criatura alguma. Uma festa deve ser celebrada na alegria; por isso os que amam o Crucificado irão à festa da cruz com rosto jovial e sereno, suportando calados, de forma que permaneça oculta aos homens, só conhecida pelo sumo Bem. Numa festa há sempre banquete; as iguarias são a vontade divina, a exemplo de nosso Amor crucificado.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

O Senhor acompanha seus pregadores


Das Homilias sobre os Evangelhos, de São Gregório Magno, papa

(Hom. 17,1-3: PL 76,1139)
(Séc. VI)

O Senhor acompanha seus pregadores

Nosso Senhor e Salvador, caríssimos irmãos, ora por palavras, ora por fatos nos adverte. Com efeito, até mesmo suas ações são preceitos, porque, ao fazer alguma coisa em silêncio, dá-nos a conhecer aquilo que devemos realizar. Eis que envia dois a dois seus discípulos a pregar, já que são dois os preceitos da caridade, o amor de Deus e do próximo. O Senhor envia a pregar os discípulos dois a dois, indicando-nos com isso, sem palavras, que quem não tem caridade para com o próximo de modo algum deverá receber o ofício da pregação.

Muito bem se diz que os enviou diante de sua face a toda cidade e local aonde ele iria (Lc 10,1). O Senhor vai atrás de seus pregadores, porque a pregação vai à frente e depois chega o Senhor à morada de nosso espírito, quando as palavras de exortação o precedem e, por elas, o espírito acolhe a verdade. Por este motivo Isaías fala a esses pregadores: Preparai o caminho do Senhor, aplanai as veredas de nosso Deus (Is 40,3). E o Salmista: Abri caminho para aquele que sobe do ocaso (Sl 67,5 Vulg.). Sobe do ocaso o Senhor porque onde morreu na paixão, ali mesmo, ao ressurgir, manifestou sua maior glória. Sobe do ocaso, porque a morte que aceitou, ressurgindo, calcou-a aos pés. Portanto abrimos caminho ao que sobe do ocaso, quando nós vos pregamos sua glória para que, vindo ele próprio depois, vos ilumine com a presença de seu amor. Ouçamos o que ele diz quando envia pregadores: A messe é grande, são poucos os operários. Rogai, pois, ao Senhor da messe que envie operários a seu campo (Mt 9,37-38). Para grande messe, poucos operários, coisa que não sem imensa tristeza podemos repetir; pois embora haja quem escute as palavras boas, falta quem as diga. Eis que o mundo está cheio de sacerdotes, todavia, raramente se vê um operário na messe de Deus; porque aceitamos, sim, o ofício sacerdotal, mas não cumprimos o dever do ofício.

Mas pensai, irmãos caríssimos, pensai no que foi dito: Rogai ao Senhor da messe que envie operários a seu campo. Pedi vós por nós, para que possamos fazer coisas dignas de vós; que a língua não se entorpeça por não querer exortar; tendo recebido o encargo de pregar, não vá nosso silêncio condenar-nos diante do justo Juiz.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Sou trigo de Deus e serei moído pelos dentes das feras


Da Carta aos romanos, de Santo Inácio, bispo e mártir

(Cap. 4,1-2; 6,1-8,3: Funk 1,217-223)
(Séc. I)

Sou trigo de Deus e serei moído pelos dentes das feras

Tenho escrito a todas as Igrejas e a todas elas faço saber que morro por Deus com alegria, desde que vós não me impeçais. Suplico-vos: não demonstreis por mim uma benevolência inoportuna. Deixai-me ser alimento das feras; por elas pode-se alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me o puro pão de Cristo. Rogai a Cristo por mim, para que por este meio me torne sacrifício para Deus.

Nem as delícias do mundo nem os reinos terrestres são vantagens para mim. Mais me aproveita morrer em Cristo Jesus do que imperar até os confins da terra. Procuro-o, a ele que morreu por nós; quero-o, a ele que por nossa causa ressuscitou. Meu nascimento está iminente. Perdoai-me, irmãos! Não me impeçais de viver, não desejeis que eu morra, eu, que tanto desejo ser de Deus. Não me entregueis ao mundo nem me fascineis com o que é material. Deixai-me contemplar a luz pura; quando lá chegar, serei homem. Concedei-me ser imitador da paixão de meu Deus. Se alguém o possui no coração, entenderá o que quero e terá compaixão de mim, sabendo quais os meus impedimentos.

O príncipe deste mundo deseja arrebatar-me e corromper meu amor para com Deus. Nenhum de vós, aí presentes, o ajude! Ponde-vos de meu lado, ou melhor, do lado de Deus. Não podeis dizer o nome de Jesus Cristo, enquanto cobiçais o mundo. Que a inveja não more em vós! Mesmo que eu em pessoa vos rogue, não me acrediteis; crede antes no que vos escrevo, desejando morrer. Meu amor está crucificado, a matéria não me inflama, porque uma água viva e murmurante dentro de mim me diz em segredo: “Vem para o Pai”. Não sinto prazer com o alimento corruptível nem com os prazeres deste mundo. Quero o pão de Deus, a carne de Jesus Cristo, que nasceu da linhagem de Davi; e quero a bebida, o seu sangue, que é a caridade incorruptível.

Não quero mais viver segundo os homens. Isto acontecerá se vós quiserdes. Rogo-vos que o queirais para alcançardes também vós a misericórdia. Com poucas palavras dirijo-me a vós; acreditai em mim! Jesus Cristo vos manifestará que digo a verdade; ele, a boca verdadeira pela qual o Pai verdadeiramente falou. Pedi vós por mim, para que o consiga. Não por motivos carnais, mas segundo a vontade de Deus vos escrevi. Se for martirizado, vós me quisestes bem; se rejeitado, vós me odiastes.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Eis que eu salvarei meu povo


Dos Tratados sobre João, de Santo Agostinho, bispo
(Tract. 26,4-6: CCL 36,261-263)
(Séc. V)

Eis que eu salvarei meu povo

Ninguém vem a mim a não ser que o Pai o atraia (Jo 6,44). Não penses ser atraído contra a vontade. A alma humana é atraída também pelo amor. Nem devemos temer que os homens que pesam as palavras e que estão muito longe da compreensão das coisas divinas nos venham talvez censurar por causa desta palavra evangélica da Escritura, e nos dizer: "Como é que creio por livre vontade, se sou atraído? Respondo eu: "Por livre vontade é pouco; és atraído também pelo prazer".
Que significa ser atraído pelo prazer? Busca tuas delícias no Senhor e ele atenderá aos pedidos de teu coração (Sl 36,4). Há um gozo do coração, seu pão delicioso é o celeste. Contudo se foi possível ao poeta dizer: "Cada um se deixa atrair por seu prazer , não pelo constrangimento, mas pelo prazer, não por obrigação, mas pelo deleite, com quanto mais força temos de dizer que o homem é atraído para Cristo. O homem que se deleita com a verdade, se deleita com a felicidade, se deleita com a justiça, se deleita com a vida sempiterna, com tudo isso que é Cristo.
Se têm os sentidos do corpo sua satisfação, estará o espírito privado de suas alegrias? Se o espírito não conhece delícias, como se disse então: Os filhos dos homens abrigam-se à sombra de tuas asas, inebriam-se com as riquezas de tua casa e tu lhes darás de beber da torrente de tuas delícias, porque em ti está a fonte da vida e à tua luz veremos a luz? (Sl 35,8-10)
Apresenta-me alguém que ame e entenderá o que falo. Mostra um desejoso, um faminto, um sedento peregrino deste deserto que suspira pela fonte da pátria eterna, mostra alguém assim e saberá de que falo. Se, porém, falo a um indiferente, não compreenderá o que digo.
Estendes um ramo verde a uma ovelha e a atrais. Mostram-se nozes a um menino, e é atraído. E corre para onde é atraído, amando, é atraído, é atraído sem violência corporal, é atraído pelo laço do coração. Se, entre as delícias e prazeres terrenos, aqueles que se apresentam aos seus apaixonados exercem forte atração sobre eles, pois é bem verdade que "cada um se deixa atrair por seu prazer , não atrairá o Cristo revelado pelo Pai? Que deseja a alma com mais veemência do que a verdade? Por isso, deve-se ter uma boca faminta. Para que deseja ele ter um paladar espiritual são, senão para discernir as coisas verdadeiras, para comer e beber a sabedoria, a justiça, a verdade, a eternidade?
Diz o Senhor: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, cá na terra, porque serão saciados (Mt 5,6), lá no céu. Eu lhe entregarei o que ama, entregarei o que espera. Verá aquilo em que acreditou ainda sem ver. Comerá aquilo de que tem fome, será saciado por aquilo de que tem sede. Quando? Na ressurreição dos mortos porque eu o ressuscitarei no último dia (Jo 6,54).

terça-feira, 11 de outubro de 2022

A Igreja é mãe amabilíssima de todos os homens


Das alocuções de São João XXIII, papa
(Abertura solene do Concílio Ecuménico Vaticano II, 11 de Outubro de 1962: AAS 54 [1962], 786-787. 792-793) 
(Séc. XX)

A Igreja é mãe amabilíssima de todos os homens 

Alegra-se a Santa Mãe Igreja, porque, por singular dom da Divina Providência, amanheceu finalmente o dia tão esperado, em que se inaugura o Concílio Ecumênico Vaticano II, aqui, junto do túmulo de São Pedro, sob a proteção da Santíssima Virgem, de quem celebramos hoje com alegria a dignidade de Mãe de Deus.
Depois de quase vinte séculos, as situações e os problemas gravíssimos que a humanidade deve enfrentar não mudam. Na realidade, Cristo ocupa sempre o posto central da história e da vida: os homens ou aderem a Ele e à sua Igreja – e então gozam da luz, da bondade, da ordem justa e do benefício da paz – , ou vivem sem Ele e contra Ele, e permanecem deliberadamente fora da Igreja – e por isso se estabelece a confusão entre eles, as relações mútuas tornam-se difíceis, ameaça o perigo de guerras sangrentas.    
Ao iniciar-se o Concílio Ecumênico Vaticano II, é evidente como nunca que a verdade do Senhor permanece eternamente (Salmo 118 (119), 89). De fato, vemos como de uma época para outra as incertas opiniões dos homens se contradizem mutuamente e muitas vezes os erros se dissipam logo ao nascer como a névoa ao raiar o sol.
Sempre a Igreja se opôs a estes erros, muitas vezes até os condenou com severidade. Nos nossos dias, porém, a Esposa de Cristo prefere usar a medicina da misericórdia, em vez de recorrer às armas do rigor; ela pensa que é melhor ir ao encontro das necessidades actuais mostrando a validez da sua doutrina do que recorrendo às condenações. Não é porque faltem doutrinas falsas, opiniões e ideias perigosas, contra as quais nos devemos precaver e opor, mas porque todas estas coisas estão tão abertamente em contradição com os retos princípios da honestidade e produziram frutos tão perniciosos que hoje os homens parecem espontaneamente inclinados a reprová-las, sobretudo aquelas formas de viver que ignoram a Deus e a sua lei, a confiança excessiva nos progressos da técnica e o bem-estar fundado exclusivamente na comodidade da vida. Estão sempre cada vez mais conscientes de que a dignidade humana e o seu conveniente aperfeiçoamento é uma questão de suma importância e muito difícil de realizar. O que mais importa é terem aprendido com a experiência que a violência causada aos outros, o poder das armas e o predomínio político não contribuem para a feliz solução dos gravíssimos problemas que os atormentam.
Neste estado de coisas, a Igreja Católica, elevando por meio deste Concílio Ecuménico o farol da verdade religiosa, quer manifestar-se como mãe amável de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e de bondade para com os filhos dela separados. Ao género humano oprimido por tantas dificuldades ela diz como Pedro ao pobre que lhe pedia esmola: “Não tenho ouro nem prata, mas dou-te o que tenho. Em nome de Jesus Nazareno, levanta-te e anda” (At 3, 6).
Quer dizer, a Igreja não oferece riquezas caducas aos homens de hoje, nem lhes promete uma felicidade só terrena, mas torna-os participantes da graça divina, que, elevando-os à dignidade de filhos de Deus, se converte numa poderosa defesa e ajuda para uma vida mais humana; abre a fonte da sua doutrina vivificadora que permite aos homens, iluminados pela luz de Cristo, compreender bem aquilo que são realmente, a sua excelsa dignidade, a meta a que devem tender. Além disso, por meio dos seus filhos, estende por toda a parte a plenitude da caridade cristã, que, mais que nenhuma outra coisa contribui para erradicar a discórdia, nada havendo mais eficaz para fomentar a concórdia, a paz justa e a união fraterna de todos.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

É preciso meditar sobre os mistérios da salvação


Dos Sermões de São Bernardo, abade
(Sermo de Aquaeductu: Opera omnia, Edit. Cisterc. 5[1968],282-283)
(Séc. XII)

É preciso meditar sobre os mistérios da salvação

O santo, que nascer de ti, será chamado Filho de Deus (cf. Lc 1,35), fonte de sabedoria, o Verbo do Pai nas alturas! Este Verbo, através de ti, Virgem santa, se fará carne, de modo que aquele que diz: Eu no Pai e o Pai em mim (Jo 10,38), dirá também: Eu saí do Pai e vim (Jo 16,28).

No princípio, diz João, era o Verbo. Já borbulha a fonte, mas por enquanto apenas em si mesma. Depois, e o Verbo era com Deus (Jo 1,1), habitando na luz inacessível. O Senhor dizia anteriormente: Eu tenho pensamentos de paz e não de aflição (cf. Jr 29,11). Mas teu pensamento está dentro de ti, ó Deus, e não sabemos o que pensas; pois quem conheceu a mente do Senhor ou quem foi seu conselheiro? (cf. Rm 11,34).

Desceu, por isto, o pensamento da paz para a obra da paz: O Verbo se fez carne e já habita em nós (Jo 1,14). Habita totalmente pela fé em nossos corações, habita em nossa memória, habita no pensamento e chega a descer até a imaginação. Que poderia antes o homem pensar sobre Deus, a não ser talvez fabricando um ídolo no coração? Era incompreensível e inacessível, invisível e inteiramente impensável; agora, porém, quis ser compreendido, quis ser visto, quis ser pensado.

De que modo, perguntas? Por certo, reclinado no presépio, deitado ao colo da Virgem, pregando no monte, pernoitando em oração; ou pendente da cruz, pálido na morte, livre entre os mortos e dominando o inferno; ou ainda ressurgindo ao terceiro dia, mostrando aos apóstolos as marcas dos cravos, sinais da vitória, e, por último, diante deles subindo ao mais alto do céu.

O que não se poderá pensar verdadeira, piedosa e santamente disto tudo? Se penso algo destas realidades, penso em Deus e em tudo ele é o meu Deus. Meditar assim, considero sabedoria, e tenho por prudência renovar a lembrança da suavidade que, em essência tão preciosa, a descendência sacerdotal produziu copiosamente, e que, haurindo do alto, Maria trouxe para nós em profusão.
Responsório Lc 1,28

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

São Benedito


Hoje é um dia muito especial para o povo brasileiro. Comemora-se o dia de são Benedito, um dos santos mais queridos e cuja devoção é muito popular no Brasil. Cultuado inicialmente pelos escravos negros, por causa da cor de sua pele e de sua origem - era africano e negro -, passou a ser amado por toda a população como exemplo da humildade e da pobreza. Esse fato também lhe valeu o apelido que tinha em vida, "o Mouro". Tal adjetivo, em italiano, é usado para todas as pessoas de pele escura e não apenas para os procedentes do Oriente. Já entre nós ele é chamado de são Benedito, o Negro, ou apenas "o santo Negro".

Há tanta identificação com a cristandade brasileira que até sua comemoração tem uma data só nossa. Embora em todo o mundo sua festa seja celebrada em 4 de abril, data de sua morte, no Brasil ela é celebrada, desde 1983, em 5 de outubro, por uma especial deferência canônica concedida à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.

Benedito Manasseri nasceu em 1526, na pequena aldeia de São Fratelo, em Messina, na ilha da Sicília, Itália. Era filho de africanos escravos vendidos na ilha. O seu pai, Cristóforo, herdou o nome do seu patrão, e tinha se casado com sua mãe, Diana Lancari. O casamento foi um sacramento cristão, pois eram católicos fervorosos. Considerados pela família à qual pertenciam, quando o primogênito Benedito nasceu foram alforriados junto com a criança, que recebeu o sobrenome dos Manasseri, seus padrinhos de batismo.

Cresceu pastoreando rebanhos nas montanhas da ilha e, desde pequeno, demonstrava tanto apego a Deus e à religião que os amigos, brincando, profetizavam: "Nosso santo mouro". Aos vinte e um anos de idade, ingressou entre os eremitas da Irmandade de São Francisco de Assis, fundada por Jerônimo Lanza sob a Regra franciscana, em Palermo, capital da Sicília. E tornou-se um religioso exemplar, primando pelo espírito de oração, pela humildade, pela obediência e pela alegria numa vida de extrema penitência.

Na Irmandade, exercia a função de simples cozinheiro, era apenas um irmão leigo e analfabeto, mas a sabedoria e o discernimento que demonstrava fizeram com que os superiores o nomeassem mestre de noviços e, mais tarde, foi eleito o superior daquele convento. Mas quando o fundador faleceu, em 1562, o papa Paulo IV extinguiu a Irmandade, ordenando que todos os integrantes se juntassem à verdadeira Ordem de São Francisco de Assis, pois não queria os eremitas pulverizados em irmandades sob o mesmo nome.

Todos obedeceram, até Benedito, que sem pestanejar escolheu o Convento de Santa Maria de Jesus, também em Palermo, onde viveu o restante de sua vida. Ali exerceu, igualmente, as funções mais humildes, como faxineiro e depois cozinheiro, ganhando fama de santidade pelos milagres que se sucediam por intercessão de suas orações.

Eram muitos príncipes, nobres, sacerdotes, teólogos e leigos, enfim, ricos e pobres, todos se dirigiam a ele em busca de conselhos e de orientação espiritual segura. Também foi eleito superior e, quando seu período na direção da comunidade terminou, voltou a reassumir, com alegria, a sua simples função de cozinheiro. E foi na cozinha do convento que ele morreu, no dia 4 de abril de 1589, como um simples frade franciscano, em total desapego às coisas terrenas e à sua própria pessoa, apenas um irmão leigo gozando de grande fama de santidade, que o envolve até os nossos dias.

Foi canonizado em 1807, pelo papa Pio VII. Seu culto se espalhou pelos quatro cantos do planeta. Em 1652, já era o santo padroeiro de Palermo, mais tarde foi aclamado santo padroeiro de toda a população afro-americana, mas especialmente dos cozinheiros e profissionais da nutrição. E mais: na igreja do Convento de Santa Maria de Jesus, na capital siciliana, venera-se uma relíquia de valor incalculável: o corpo do "santo Mouro", profetizado na infância e ainda milagrosamente intacto. Assim foi toda a vida terrena de são Benedito, repleta de virtudes e especiais dons celestiais provindos do Espírito Santo.

Fonte: Site da Arquidiocese de São Paulo, Santo do Dia

Oração

Ó Deus, que em São Benedito, o Negro, manifestais as vossas maravilhas, chamando à vossa Igreja homens de todos os povos, raças e nações, concedei, por sua intercessão, que todos, feitos vossos filhos e filhas pelo batismo, convivam como verdadeiros irmãos. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Devemos ser simples, humildes e puros. São Francisco de Assis.


Da Carta a todos os fiéis, de São Francisco de Assis

(Opuscula, edit. Quaracchi 1949,87-94)
(Séc. XIII)

Devemos ser simples, humildes e puros

O Pai Altíssimo anunciou a vinda do céu do tão digno, tão santo e glorioso Verbo do Pai, através de seu santo, Gabriel, à santa e gloriosa Virgem Maria, em cujo seio recebeu a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade. Ele quis, no entanto, sendo incomparavelmente mais rico, escolher a pobreza junto com a sua santíssima mãe. Nas vésperas de sua paixão, celebrou a Páscoa com os discípulos. Depois, orou ao Pai dizendo: Pai, se for possível, afaste-se de mim este cálice (Mt 26,39).

Pôs, contudo, sua vontade na vontade do Pai. E a vontade do Pai era que seu Filho bendito e glorioso, dado a nós e nascido para nós, se oferecesse em sacrifício e vítima no altar da cruz, pelo seu próprio sangue. Sacrifício não para si, por quem tudo foi feito, mas por nossos pecados, deixando-nos o exemplo para lhe seguirmos as pegadas (cf. 1Pd 2,21). E quer que todos nos salvemos por ele e o acolhamos com coração puro e corpo casto.

Ó como são felizes e benditos aqueles que amam o Senhor e fazem o que o mesmo Senhor diz no evangelho: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e ao próximo como a ti mesmo! (Lc 10,27). Amemos, portanto, a Deus e adoremo-lo com coração puro e mente pura porque, acima de tudo, disto está ele à procura e diz: Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade (Jo 4,23). É necessário que todos que o adoram, o adorem no espírito da verdade. E dia e noite elevemos para ele louvores e orações, dizendo: Pai nosso que estás nos céus (Mt 6,9); porque é preciso orar sempre e não desfalecer (cf. Lc 18,1).

Além disto, produzamos dignos frutos de penitência (cf. Mt 3,8). E amemos os próximos como a nós mesmos. Tenhamos caridade e humildade e façamos esmolas, já que estas lavam as almas das nódoas dos pecados. Os homens perdem tudo o que deixam neste mundo. Levam consigo somente a paga da caridade e as esmolas que fizeram: delas receberão do Senhor o prêmio e a justa recompensa.

Não nos convém sermos sábios e prudentes segundo a carne, mas temos antes de ser simples, humildes e puros. Jamais desejemos ficar acima dos outros, mas prefiramos ser servos e submissos a toda criatura humana, por causa de Deus. Sobre todos os que assim agirem e perseverarem até o fim repousará o Espírito do Senhor e fará neles sua casa e mansão. Serão filhos do Pai celeste, pois fazem suas obras, e são esposos, irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Protomártires do Brasil


SANTOS ANDRÉ DE SOVERAL, AMBRÓSIO FRANCISCO, PRESBÍTEROS, E SEUS COMPANHEIROS, MÁRTIRES

Santo André de Soveral era sacerdote jesuíta, nascido em São Vicente (SP); foi ser missionário para evangelizar os indígenas no litoral do Nordeste. Depois de passar ao clero diocesano, foi pároco em Cunhaú (RN), ali onde foi martirizado no domingo, 16 junho de 1645, durante a celebração da Missa, junto com outras 69 pessoas. O martírio ocorreu no período da ocupação holandesa no Nordeste do Brasil por protestantes calvinistas huguenotes, que moveram uma sangrenta perseguição contra os católicos ali já residentes. A capela foi cercada por índios e soldados holandeses, que trucidaram a todos. Morreram por causa de sua fé católica.

Ao saberem do massacre de Cunhaú, muitos moradores de Natal e arredores procuraram refúgio no Forte dos Reis Magos. No dia 3 de outubro de 1645, foram levados, junto com o Pe. Ambrósio Francisco Ferro, para as margens do rio Uruaçu, perto de Natal, onde os esperavam índios e soldados holandeses armados. Um pastor calvinista tentou demovê-los da fé católica, mas todos resistiram e, então, foram cruelmente trucidados ali mesmo. Santo Ambrósio Francisco Ferro, sacerdote português nascido nos Açores, atuava como pároco em Natal desde 1636. Com ele, foram martirizadas outras 80 pessoas, adultos, jovens e até crianças.

São Mateus Moreira foi um dos leigos martirizados e sua bela profissão de fé na Eucaristia foi recolhida. Ao lhe ser arrancado o coração pelas costas, vivo ainda, pronunciou suas últimas palavras: “louvado seja o Santíssimo Sacramento!” Por isso, com a aprovação da Santa Sé, a CNBB o proclamou padroeiro dos Ministros Extraordinários da Sagrada Comunhão Eucarística.

De fato, o Brasil possui um outro grupo de protomártires, que entregaram sua vida por Cristo e pelo Evangelho bem mais cedo: trata-se do Beato Padre Inácio de Azevedo e de seus 39 companheiros mártires. Pe. Inácio, jesuíta português, já havia estado no Brasil e, vendo a imensidade da missão a ser desempenhada, regressou à Europa para buscar colaboradores. No retorno ao Brasil, ao largo das ilhas Canárias, o navio que levava 39 missionários foi abordado por piratas anticatólicos. No dia 15 de julho de 1570, os corsários mataram Pe. Inácio e seus 39 companheiros – 31 portugueses e 8 espanhóis. Foram beatificados pelo Papa Pio IX já em 1854, e a memória litúrgica desses protomártires do Brasil é celebrada no dia 17 de julho.

Embora apenas o próprio Pe. Inácio de Azevedo tenha estado no Brasil, de fato, esse grupo de 40 mártires entregou sua vida até o martírio pela evangelização do Brasil, mesmo antes de terem pisado a Terra de Santa Cruz. São mártires da fé, testemunhas do Evangelho de Cristo e do ardor missionário que os animava.

Os mártires testemunham a força do Evangelho e o valor supremo do reino de Deus, pelo qual vale a pena entregar tudo, até a própria vida. Recordar os mártires, portanto, é valorizar o testemunho que eles deram em favor da nossa fé. Sua coragem e constância, mesmo diante da tortura e da condenação à morte, fortalecem nossa fé e nossa coragem, mesmo quando o caminho é difícil. Os santos e mártires são os grandes cristãos e membros exemplares da Igreja Católica.

Em 15 de outubro de 2017 o Papa Francisco proclamou “santos” os 30 protomártires do Rio Grande do Norte: Pe. André de Soveral, Pe. Ambrósio Francisco Ferro, Mateus Moreira e seus 27 companheiros leigos - homens, mulheres e crianças. O Papa São João Paulo II os havia beatificado no dia 5 de março de 2000, na Praça de São Pedro, em Roma. Na verdade, o número desses mártires é bem maior, mas os nomes da maioria deles são desconhecidos.

Fonte: Site Arquidiocese de São Paulo, Santo do Dia

Oração

Deus todo-poderoso, que destes aos Santos André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro e Seus Companheiros a graça de sofrer pelo Cristo, ajudai também a nossa fraqueza, para que possamos viver firmes em nossa fé, como eles não hesitaram em morrer por vosso amor. 

sábado, 1 de outubro de 2022

No coração da Igreja serei o amor


Da Autobiografia de Santa Teresa do Menino Jesus, virgem

(Manuscrits autobiographiques, Lisieux1957,227-229)
(Séc.XIX)

No coração da Igreja serei o amor

Meus imensos desejos me eram um autêntico martírio. Fui, então, às cartas de São Paulo a ver se encontrava uma resposta. Meus olhos caíram por acaso nos capítulos doze e treze da Primeira Carta aos Coríntios. No primeiro destes, li que todos não podem ser ao mesmo tempo apóstolos, profetas, doutores, e que a Igreja consta de vários membros; os olhos não podem ser mãos ao mesmo tempo. Resposta clara, sem dúvida, mas não capaz de satisfazer meu desejo e dar-me a paz. Perseverei na leitura sem desanimar e encontrei esta frase sublime: Aspirai aos melhores carismas. E vos indico um caminho ainda mais excelente (1Cor 12,31). O Apóstolo esclarece que os melhores carismas nada são sem a caridade, e esta caridade é o caminho mais excelente que leva com segurança a Deus. Achara enfim o repouso.

Ao considerar o Corpo místico da Igreja, não me encontrara em nenhum dos membros enumerados por São Paulo, mas, ao contrário, desejava ver-me em todos eles. A caridade deu-me o eixo de minha vocação. Compreendi que a Igreja tem um corpo formado de vários membros e neste corpo não pode faltar o membro necessário e o mais nobre: entendi que a Igreja tem um coração e este coração está inflamado de amor. Compreendi que os membros da Igreja são impelidos a agir por um único amor, de forma que, extinto este, os apóstolos não mais anunciariam o Evangelho, os mártires não mais derramariam o sangue. Percebi e reconheci que o amor encerra em si todas as vocações, que o amor é tudo, abraça todos os tempos e lugares, numa palavra, o amor é eterno.

Então, delirante de alegria, exclamei: Ó Jesus, meu amor, encontrei afinal minha vocação: minha vocação é o amor. Sim, encontrei o meu lugar na Igreja, tu me deste este lugar, meu Deus. No coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor e desse modo serei tudo, e meu desejo se realizará.

Santa Teresinha do Menino Jesus.


A vida da santa Teresa de Lisieux, ou santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face, seu nome de religiosa e como o povo carinhosamente a prefere chamar, marca na história da Igreja uma nova forma de entregar-se à religiosidade. No lugar do medo do "Deus duro e vingador", ela coloca o amor puro e total a Jesus como um fim em si mesmo para toda a existência eterna. Um amor puro, infantil e total, como deixaria registrado nos livros "Infância espiritual" e "História de uma alma", editados a partir de seus escritos. Sua vida foi breve, mas plena de dedicação e entrega. Morreu virgem como Maria, a Mãe que venerava, e jovem como o amor que vivenciava a Jesus, pela pura ação do Espírito Santo.

Teresinha nasceu em Alençon, na França, em 2 de janeiro de 1873. Foi batizada com o nome de Maria Francisca Martin e desde então destinada ao serviço religioso, assim como suas quatro irmãs. Os pais, quando jovens, sonhavam em servir a Deus. Mas circunstâncias especiais os impediram e a mãe prometeu ao Senhor que cumpriria seu papel de genitora terrena, mas que suas filhas trilhariam o caminho da fé. E assim foi, com entusiasmada aceitação por parte de Teresinha desde a mais tenra idade.

Caçula, viu as irmãs mais velhas, uma a uma, consagrando-se a Deus até chegar sua vez. Mas a vontade de segui-las era tanta que não quis nem esperar a idade correta. Aos quinze anos, conseguiu permissão para entrar no Carmelo, em Lisieux, permissão concedida especial e pessoalmente pelo papa Leão XIII.

Ela própria escreveu que, para servir a Jesus, desejava ser cavaleiro das cruzadas, padre, apóstolo, evangelista, mártir... Mas ao perceber que o amor supremo era a fonte de todas essas missões, depositou nele sua vida. Sua obra não frutificou pela ação evangelizadora ou atividade caritativa, mas sim em oração, sacrifícios, provações, penitências e imolações, santificando o seu cotidiano enquanto carmelita. Essa vivência foi registrada dia a dia, sendo depois editada, perpetuando-se como livro de cabeceira de religiosos, leigos e da elite dos teólogos, filósofos e pensadores do século XX.

Teresinha teve seus últimos anos consumidos pela terrível tuberculose, que, no entanto, não venceu sua paciência com os desígnios do Supremo. Morreu em 1° de outubro de 1897, com vinte e quatro anos, depois de prometer uma chuva de rosas sobre a Terra quando expirasse. Essa chuva ainda cai sobre nós, em forma de uma quantidade incalculável de graças e milagres alcançados através de sua intervenção em favor de seus devotos.

Teresa de Lisieux foi beatificada em 1923 e canonizada em 1925 pelo papa Pio XI. Ela, que durante toda a sua vida teve um grande desejo de evangelizar e ofereceu sua vida à causa missionária, foi aclamada, dois anos depois, pelo mesmo pontífice, como "padroeira especial de todos os missionários, homens e mulheres, e das missões existentes em todo o universo, tendo o mesmo título de são Francisco Xavier". Esta "grande santa dos tempos modernos" foi proclamada doutora da Igreja pelo papa João Paulo II em 1997.

Fonte: Site Arquidiocese de São Paulo, Santo do Dia

Oração

Ó Deus, que preparais o vosso Reino para os pequenos e humildes, dai-nos seguir confiantes o caminho de Santa Teresinha do Menino Jesus, para que, por sua intercessão, nos seja revelada a vossa glória.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo


Do Prólogo ao Comentário sobre o Profeta Isaías, de São Jerônimo, presbítero
(Nn.1.2: CCL 73,1-3)
(Séc.V)

Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo

Pago o que devo, obediente aos preceitos de Cristo que diz: Perscrutai as Escrituras (Jo 5,39); e: Buscai e achareis (Mt 7,7). Assim que não me aconteça ouvir com os judeus: Errais, sem conhecer as Escrituras nem o poder de Deus (Mt 22,29). Se, conforme o Apóstolo Paulo, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus, e quem ignora as Escrituras ignora o poder de Deus e sua sabedoria, ignorar as Escrituras é ignorar Cristo.

Daí que eu imite o pai de família que de seu tesouro tira coisas novas e antigas. E a esposa, no Cântico dos Cânticos, que diz: Coisas novas e antigas, irmãozinho meu, guardei para ti (cf. Ct 7,14 Vulg.). E explicarei Isaías ensinando a vê-lo não só como profeta, mas ainda como evangelista e apóstolo. Ele próprio falou de si e dos outros evangelistas: Como são belos os pés daqueles que evangelizam boas novas, que evangelizam a paz (Is 52,7). E também Deus lhe fala como a um apóstolo: Quem enviarei, e quem irá a este povo? E ele respondeu: Eis-me aqui, envia-me (cf. Is 6,8).

Ninguém pense que desejo resumir em breves palavras o conteúdo deste livro, pois esta escritura contém todos os mistérios do Senhor, falando do Emanuel, o nascido da Virgem, o realizador de obras e sinais estupendos, o morto e sepultado, o ressurgido dos infernos e o salvador de todos os povos. Que direi de física, ética e lógica? Tudo o que há nas santas Escrituras, tudo o que a língua humana pode proferir e uma inteligência mortal receber, está contido neste livro. Atesta esses mistérios quem escreveu: Será para vós a visão de todas as coisas como as palavras de um livro selado; se é dado a alguém que saiba ler, dizendo-lhe: Lê isto, ele responderá: Não posso, está selado. E se for dado a quem não sabe ler e se lhe disser: Lê, responderá: Não sei ler (Is 29,11-12).

E se alguém parecer fraco, ouça as palavras do mesmo Apóstolo: Dois ou três profetas falem e os outros julguem; mas se a outro que está sentado algo for revelado, que se cale o primeiro (1Cor 14,32). Como podem guardar silêncio, se está ao arbítrio do Espírito, que fala pelos profetas, o calar-se e o falar? Se na verdade compreendiam aquilo que diziam, tudo está repleto de sabedoria e de inteligência. Não era apenas o ar movido pela voz que chegava a seus ouvidos, mas Deus falava no íntimo dos profetas, segundo outro Profeta diz: O anjo que falava a mim (cf. Zc 1,9), e: Clamando em nossos corações, Abba, Pai (Gl 4,6), e: Ouvirei o que o Senhor Deus disser em mim (Sl 84,9).

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

A palavra anjo indica o ofício, não a natureza

Das Homilias sobre os Evangelhos, de São Gregório Magno, papa

(Hom. 34,8-9: PL 76,1250-1251)
(Séc. VI)

A palavra anjo indica o ofício, não a natureza

É preciso saber que a palavra anjo indica o ofício, não a natureza. Pois estes santos espíritos da pátria celeste são sempre espíritos, mas nem sempre podem ser chamados anjos, porque somente são anjos quando por eles é feito algum anúncio. Aqueles que anunciam fatos menores são ditos anjos; os que levam as maiores notícias, arcanjos. Foi por isto que à Virgem Maria não foi enviado um anjo qualquer, mas o arcanjo Gabriel; para esta missão, era justo que viesse o máximo anjo para anunciar a máxima notícia. Por este motivo também a eles são dados nomes especiais para designar, pelo vocábulo, seu poder na ação. Naquela santa cidade, onde há plenitude da ciência pela visão do Deus onipotente, não precisam de nomes próprios para se distinguirem uns dos outros. Mas quando vêm até nós para cumprir uma missão, trazem também entre nós um nome derivado desta missão. Assim Miguel significa: “Quem como Deus?”; Gabriel, “Força de Deus”; e Rafael, “Deus cura”.

Todas as vezes que se trata de grandes feitos, diz-se que Miguel é enviado, porque pelo próprio nome e ação dá-se a entender que ninguém pode por si mesmo fazer o que Deus quer destacar. Por isto, o antigo inimigo, que por soberba cobiçou ser igual a Deus, dizendo: Subirei ao céu, acima dos astros do céu erguerei meu trono, serei semelhante ao Altíssimo ( cf. Is 14,13-14), no fim do mundo, quando será abandonado às próprias forças para ser destruído no extremo suplício, pelejará com o arcanjo Miguel, como diz João: Houve uma luta com Miguel arcanjo (Ap 12,7).

A Maria é enviado Gabriel, que significa “Força de Deus”. Vinha anunciar aquele que se dignou aparecer humilde para combater as potestades do ar. Portanto devia ser anunciado pela força de Deus o Senhor dos exércitos que vinha poderoso no combate. Rafael, como dissemos, significa “Deus cura”, porque ao tocar nos olhos de Tobias como que num ato de cura, lavou as trevas de sua cegueira. Quem foi enviado a curar, com justiça se chamou “Deus cura”.


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Deve-se preferir o serviço dos pobres acima de tudo


Dos Escritos de São Vicente de Paulo, presbítero

(Cf. Correspondance, Entretiens, Documents, ed. P. Coste, Paris 1920-1925, passim)
(Séc. XVII)

Deve-se preferir o serviço dos pobres acima de tudo

Não temos de avaliar os pobres por suas roupas e aspecto, nem pelos dotes de espírito que pareçam ter. Com frequência são ignorantes e curtos de inteligência. Mas muito pelo contrário, se considerardes os pobres à luz da fé, então percebereis que estão no lugar do Filho de Deus que escolheu ser pobre. De fato, em seu sofrimento, embora quase perdesse a aparência humana - loucura para os gentios, escândalo para os judeus - apresentou-se, no entanto, como o evangelizador dos pobres: Enviou-me para evangelizar os pobres (Lc 4,18). Devemos ter os mesmos sentimentos de Cristo e imitar aquilo que ele fez: ter cuidado pelos indigentes, consolá-los, auxiliá-los, dar-lhes valor.

Com efeito, Cristo quis nascer pobre, escolheu pobres para seus discípulos, fez-se servo dos pobres e de tal forma quis participar da condição deles, que declarou ser feito ou dito a ele mesmo tudo quanto de bom ou de mau se fizesse ou dissesse aos pobres. Deus ama os pobres, também ama aqueles que os amam. Quando alguém tem um amigo, inclui na mesma estima aqueles que demonstram amizade ou prestam obséquio ao amigo. Por isto esperamos que, graças aos pobres, sejamos amados por Deus. Visitando-os, pois, esforcemo-nos por entender os pobres e os indigentes e, compadecendo-nos deles, cheguemos ao ponto de poder dizer com o Apóstolo: Fiz-me tudo para todos (1Cor 9,22). Por este motivo, se é nossa intenção termos o coração sensível às necessidades e misérias do próximo, supliquemos a Deus que derrame em nós o sentimento de misericórdia e de compaixão, cumulando com ele nossos corações e guardando-os repletos.

Deve-se preferir o serviço dos pobres a tudo o mais e prestá-lo sem demora. Se na hora da oração for necessário dar remédios ou auxílio a algum pobre, ide tranquilos, oferecendo a Deus esta ação como se estivésseis em oração. Não vos perturbeis com angústia ou medo de estar pecando por causa de abandono da oração em favor do serviço dos pobres. Deus não é desprezado, se por causa de Deus dele nos afastarmos, quer dizer, interrompermos a obra de Deus, para realizá-la de outro modo.

Portanto, ao abandonardes a oração, a fim de socorrer a algum pobre, isto mesmo vos lembrará que o serviço é prestado a Deus. Pois a caridade é maior do que quaisquer regras, que, além do mais, devem todas tender a ela. E como a caridade é uma grande dama, faz-se necessário cumprir o que ordena. Por conseguinte, prestemos com renovado ardor nosso serviço aos pobres; de modo particular aos abandonados, indo mesmo à sua procura, pois nos foram dados como senhores e protetores.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A preciosa morte dos mártires cujo preço foi a morte de Cristo


Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo

(Sermo 329,1-2: PL 38,1454-1455)
(Séc. V)

A preciosa morte dos mártires
cujo preço foi a morte de Cristo

Pelos feitos tão gloriosos dos mártires, que fazem a Igreja florescer por toda parte, provamos com nossos próprios olhos como é verdadeiro o que cantamos: É preciosa aos olhos do Senhor a morte de seus santos (Sl 115,15). Portanto, é preciosa não só aos nossos olhos, mas aos olhos daquele por cujo nome se sofreu. Contudo o preço destas mortes é a morte de um só. Quantas mortes comprou um só com a sua morte? Se ele não morresse, o grão de trigo não se multiplicaria. Ouvistes suas palavras, estando próxima a paixão, quer dizer, quando se aproximava nossa redenção: Se o grão de trigo, caindo em terra, não morrer, ficará sozinho; morrendo, porém, produzirá muito fruto (Jo 12,24).

Houve na cruz um grande comércio: abriu-se ali a bolsa para pagar nosso custo; quando seu lado foi aberto pela lança do que feria, dali correu o preço do mundo inteiro. Foram comprados fiéis e mártires; mas a fé dos mártires suportou a prova: o sangue é testemunha. Retribuíram o que tinha sido pago por eles e realizaram as palavras de São João: Assim como Cristo entregou sua vida por nós, também nós devemos entregar nossas vidas pelos irmãos (cf. 1Jo 3,16). E em outro lugar se disse: Sentaste à grande mesa, observa com cuidado o que te oferecem porque deves preparar o mesmo (Pr 23,1-2). A grande mesa é aquela em que as iguarias são o próprio Senhor da mesa. Ninguém alimenta os convivas com sua pessoa, mas assim procede o Cristo Senhor: ele é que convida, ele é o pão e a bebida. Portanto, os mártires reconheceram o que comeram e o que beberam, para retribuírem o mesmo.

Mas como retribuir, a não ser que lhes desse com que retribuir aquele que primeiro pagou? Que retribuirei ao Senhor por tudo quanto me deu? Tomarei o cálice da salvação (Sl 115,12-13). Que cálice é este? O cálice da paixão, amargo e salutar; cálice que, se dele não bebesse antes o médico, o doente temeria tocá-lo.

É ele este cálice. Nós o reconhecemos nos lábios de Cristo que dizia: Pai, se possível for afaste-se de mim este cálice (Mt 26,39). Deste mesmo cálice disseram os mártires: Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor (Sl 115,13).

Não temos então medo de fraquejar? Por quê? Porque invocaremos o nome do Senhor. Como venceriam os mártires, se neles não vencesse aquele que disse: Alegrai-vos porque eu venci o mundo? (Jo 16,33). O soberano dos céus governava-lhes a mente e a língua e, através deles, derrotava o diabo na terra e coroava os mártires no céu. Felizes os que assim beberam deste cálice: terminaram as dores, receberam as honras!

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

A glória e a exaltação de Cristo é a cruz

Dos Sermões de Santo André de Creta, bispo

(Oratio 10 in Exaltatione sanctae crucis: PG97,1018-1019) (Séc.VIII)

A glória e a exaltação de Cristo é a cruz

Celebramos a festa da cruz; por ela as trevas são repelidas e volta a luz. Celebramos a festa da cruz e junto com o Crucificado somos levados para o alto para que, abandonando a terra com o pecado, obtenhamos os céus. A posse da cruz é tão grande e de tão imenso valor que seu possuidor possui um tesouro. Chamo com razão tesouro aquilo que há de mais belo entre todos os bens pelo conteúdo e pela fama. Nele, por ele e para ele reside toda a nossa salvação, e é restituída ao seu estado original.

Se não houvesse a cruz, Cristo não seria crucificado. Se não houvesse a cruz, a vida não seria pregada ao lenho com cravos. Se a vida não tivesse sido cravada, não brotariam do lado as fontes da imortalidade, o sangue e a água, que lavam o mundo. Não teria sido rasgado o documento do pecado, não teríamos sido declarados livres, não teríamos provado da árvore da vida, não se teria aberto o paraíso. Se não houvesse a cruz, a morte não teria sido vencida e não teria sido derrotado o inferno.

É, portanto, grande e preciosa a cruz. Grande sim, porque por ela grandes bens se tornaram realidade; e tanto maiores quanto, pelos milagres e sofrimentos de Cristo, mais excelentes quinhões serão distribuídos. Preciosa também porque a cruz é paixão e vitória de Deus: paixão, pela morte voluntária nesta mesma paixão; e vitória porque o diabo é ferido e com ele a morte é vencida. Assim, arrebentadas as prisões dos infernos, a cruz também se tornou a comum salvação de todo o mundo.

É chamada ainda de glória de Cristo, e dita a exaltação de Cristo. Vemo-la como o cálice desejável e o termo dos sofrimentos que Cristo suportou por nós. Que a cruz seja a glória de Cristo, escuta-o a dizer: Agora, o Filho do homem é glorificado e nele Deus é glorificado e logo o glorificará (Jo 13,31-32). E de novo: Glorifica-me tu, Pai, com a glória que tinha junto de ti antes que o mundo existisse (Jo 17,5). E repete: Pai, glorifica teu nome. Desceu então do céu uma voz: Glorifiquei-o e tornarei a glorificar (Jo 12,28), indicando aquela glória que então alcançou na cruz.

Que ainda a cruz seja a exaltação de Cristo, escuta o que ele próprio diz: Quando eu for exaltado, atrairei então todos a mim (cf. Jo 12,32). Bem vês que a cruz é a glória e a exaltação de Cristo.



terça-feira, 13 de setembro de 2022

Para mim, viver é Cristo e morrer é lucro

Das Homilias de São João Crisóstomo, bispo
(Ante exsilium, nn. 1-3: PG 52,427*-430)
(Séc. IV)

Para mim, viver é Cristo e morrer é lucro

Sobrevêm muitas ondas e fortes tempestades, mas não tememos afogar, pois estamos firmados sobre a pedra. Enfureça-se o mar, não tem forças para destruir a pedra. Ergam-se as vagas, não podem submergir o navio de Cristo. Pergunto eu: que temeremos? A morte? Para mim, viver é Cristo, e morrer é lucro (Fl 1,21). O exílio talvez, dizes-me? Do Senhor é a terra e tudo quanto contém (Sl 23,1). A confiscação dos bens? Nada trouxemos para o mundo e, é certo, nada daqui poderemos levar (1Tm 6,7); os pavores deste mundo são desprezíveis, e seus bens, merecedores de riso. Não tenho medo da pobreza, não ambiciono riquezas; não temo a morte, nem prefiro viver a não ser para vosso proveito. Por isto recordo os acontecimentos atuais e rogo à vossa caridade que tenhais confiança.

Não escutas o Senhor dizer: Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei ali no meio deles? (Mt 18,20). E onde há tanta gente ligada pelos laços da caridade, não estará ele presente? Tenho seu penhor. Será que confio em minhas próprias forças? Seguro seu testamento. Este é o meu bordão, a minha segurança, o meu porto tranquilo. Abale-se embora o universo, tenho sua resposta, leio os seus escritos: aí está a muralha para mim, a fortaleza. Que escritos? Eu estou convosco todos os dias até a consumação do mundo (Mt 28,20).

Cristo está comigo, a quem temerei? Mesmo que as ondas, os mares, o furor dos príncipes se agitem contra mim, tudo isto não me impressiona mais do que uma aranha. E se vossa caridade não me retivesse, não recusaria partir ainda hoje mesmo para outro lugar. Repito sempre: Senhor, faça-se a tua vontade (Mt 26,42); não o que quer este ou aquele, mas o que tu queres. Esta é a minha torre, minha pedra imóvel; este, o meu báculo firme. Se Deus quer isto, faça-se. Se quiser que permaneça aqui, agradecerei. Onde quer que me queira, darei graças.

E onde estou eu, aí estais vós; onde estais, aí eu também: somos um só corpo e não se separa o corpo da cabeça nem a cabeça do corpo. Estamos em lugares distantes, mas unidos na caridade, que nem a morte poderá separar. Porque, embora morra meu corpo, viverá a alma que se lembrará do povo.

Vós sois meus cidadãos, vós, meus pais, vós, meus irmãos, vós, filhos, vós, membros, vós, corpo. Para mim sois a luz, ou melhor, mais deliciosos que esta luz. O que poderá enviar-me um raio igual à vossa caridade? O raio de sol para mim é vida, porém vossa caridade tece-me a coroa para o futuro.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Em todos os momentos, pensa em Maria e invoca Maria

Das Homilias de São bernardo, abade, em louvor da Virgem Mãe
(tradução não oficial)

(Hom. 2, 17, 1-33: SC 390, 1993, 168-170) (Séc. XII)

Em todos os momentos, pensa em Maria e invoca Maria

O nome da Virgem era Maria, diz o Evangelista. Falemos um pouco a propósito deste nome, que por alguns significa “estrela do mar” e se adapta perfeitamente à Virgem Mãe. De facto ela é comparada muito apropriadamente a uma estrela. Assim como o astro emite os seus raios de luz sem corromper-se, também a Virgem deu à luz o seu Filho sem sofrer dano algum. Nem o raio luminoso diminuiu a claridade da estrela, nem o Filho alterou a integridade da Virgem. Ela é a nobre estrela nascida de Jacob, cuja irradiação ilumina todo o universo, cujo esplendor brilha nos céus e penetra nos abismos, resplandece na terra e aquece as almas mais que os corpos, fomenta as virtudes e queima os vícios. Ela é a estrela brilhante e magnífica que nada impede de se elevar sobre este mar vasto e imenso, refulgente nos seus méritos e iluminando pelos seus exemplos.
   Tu que te vês, nas flutuações deste mundo, agitado no meio das procelas e das tempestades em vez de caminhar sobre terra firme, não afastes os olhos do brilho desta estrela, se não queres naufragar nas tormentas. Se se levantam os ventos das ten- tações, se te precipitas nos escolhos das tribulações, olha para a estrela, invoca Maria. Se és sacudido pelas vagas do orgulho ou da ambição ou da maledicência ou da inveja, olha para a estrela, invoca Maria. Se a ira ou a avareza ou os atractivos da carne sacodem a barqueta da tua mente, olha para Maria. Se, perturbado pela enormidade dos teus pecados, confundido pela imundície da tua consciência, aterrado pelo horror do julgamento, começas a ser absorvido pelo abismo da tristeza, pelo precipício do desespero, pensa em Maria.
   Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca Maria. Não esteja o seu nome ausente da tua boca, não esteja ausente do teu coração. E para obter o socorro das suas orações, não te separes do exemplo da sua vida. Se a segues, não te extraviarás; se a invocas, não desesperarás; se pensas nela, não errarás. Sob a sua protecção, não terás medo; sob a sua direcção, não te cansarás; sob o seu amparo, alcançarás a meta. E assim experimentarás em ti mesmo como é verdadeira esta palavra: E o nome da Virgem era Maria.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Bem aventurados vós!



Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 6,20-26

Naquele tempo, 20 Jesus levantando os olhos para os seus discípulos, disse: 

"Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!

21 Bem-aventurados, vós que agora tendes fome, porque sereis saciados!

Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir!

22 Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome,  por causa do Filho do Homem!

23 Alegrai-vos, nesse dia, e exultai pois será grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas.

24 Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação!

25 Ai de vós, que agora tendes fartura, porque passareis fome! 

Ai de vós, que agora rides, porque tereis luto e lágrimas!

26 Ai de vós quando todos vos elogiam! Era assim que os antepassados deles tratavam os falsos profetas".

Palavra da Salvação.


Meditação.

O evangelho está dividido em duas partes. A primeira, as bem aventuranças. A segunda, o que se convencionou de chamar o discurso dos "ais".

Ao proferir os "ais", Jesus começa se dirigindo aos ricos. Lembremos que a riqueza era sinal de prosperidade, de bênção, para o povo hebreu. E e pobreza, sinal de maldição.

Jesus inverte essa lógica. Ao dizer que os ricos já tem sua consolação, ele deixa um sinal de esperança para os pobres. Toca o coração desses. A riqueza não é um valor em si mesmo.

Ele dirige sua atenção para os que tem fartura. Aqueles que tem muita comida, muitas posses. A fartura era considerada outro sinal de bênção de Deus. O ter em excesso fez com que o rico, da parábola do Pobre Lázaro, não fosse para o céu.

Aos que riem, estes chorarão. Aqui devemos ter cuidado. Rir é um santo remédio. Mas ele se dirige àqueles que achando possuir bens, e que tem práticas religiosas vazias de sentido, que desprezam a dor dos outros, acham que estão num estado de alegria. Os que sufocam a vida dos mais pobres, esses chorarão, como chorou o faraó.

E por último, como dizia o poeta Augusto dos Anjos, "a mão que te afaga, é a mesma que te apedreja". A boca que te elogia, é a mesma que poderá falar mal de ti quando sua profecia não agradar. Quando sua pregação foi contrária aos interesses daqueles que detém o poder, o elogio se transforma em perseguição.

O antidoto contra isso são as bem aventurança que abrem a leitura de hoje. 

Rico é aquele que abre mãos de sua riqueza em favor dos pobres, e por isso, os dois hão de chegar ao Reino de Deus.

Os que tem fome, e sede, serão saciados. E nós devemos ser instrumentos desse novo jeito de ser. Alimentar os que tem fome, e saciar os que tem sede. Aos que tem fartura, devem entender que no Reino de Deus não há famintos, nem sedentos.

Aqueles que choram pelas dores pelas quais estão passando, podem ter a certeza de que isso se mudará em vida. Lembremos o que disse Deus a Moisés quando o chamou para libertar o seu povo, "eu vi muito bem a miséria do meu povo (...). Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo". (Ex 3,7-8).

Quem vive esse novo jeito de ser proposto por Jesus nas bem aventuranças, há de ser perseguido. Deus está meio de nós, e conhece nossas necessidades, e conta conosco para divulgar essa libertação. Por isso, todo aquele que vive essa missão é perseguido. E quando isso acontece, sabemos que estamos no caminho certo. São Oscar Romero disse: "em um país de injustiças, se a Igreja não é perseguida é porque é conivente com a injustiça". 

Ao fazermos a lectio divina de hoje, sejamos mulheres e homens construtores de um mundo novo, onde o amor é mais do que o ódio. A vida é mais do que a morte. A paz é mais do que a guerra e os conflitos. Um cristão autêntico sempre será perseguido.