quarta-feira, 8 de maio de 2024

Os dias entre a ressurreição e a ascensão do Senhor

Dos Sermões de São Leão Magno, papa (Sermo 1deAscensione,2-4: PL 54,395-396)(Séc. V)

Os dias entre a ressurreição e a ascensão do Senhor

Caríssimos filhos, os dias entre a ressurreição e a ascensão do Senhor não foram passados na ociosidade. Pelo contrário, neles se confirmaram grandes sacramentos, grandes mistérios foram neles revelados. No decurso destes dias foi afastado o medo da morte cruel e proclamada a imortalidade não apenas da alma mas também do corpo. Nestes dias, mediante o sopro do Senhor, todos os apóstolos receberam o Espírito Santo; nestes dias foi confiado ao apóstolo Pedro, mais que a todos os outros, o cuidado do rebanho do Senhor, depois de ter recebido as chaves do reino.
Durante esses dias, o Senhor juntou-se, como um terceiro companheiro, a dois discípulos em viagem, e para dissipar as sombras de nossas dúvidas repreendeu a lentidão de espírito desses homens cheios de medo e pavor. Seus corações, por ele iluminados, receberam a chama da fé; e à medida que o Senhor ia lhes explicando as Escrituras, foram se convertendo de indecisos que eram em ardorosos. E mais: ao partir o pão, quando estavam sentados com ele à mesa, abriram-se-lhes os olhos. Abriram-se os olhos dos dois discípulos, como os dos nossos primeiros pais.
Mas quão mais felizes foram os olhos dos dois discípulos ante a glorificação da própria natureza, manifestada em Cristo, do que os olhos de nossos primeiros pais ante a vergonha da própria prevaricação! Durante todo esse tempo, caríssimos filhos, passado entre a ressurreição e a ascensão do Senhor, a providência de Deus esforçou-se por ensinar e insinuar não apenas aos olhos mas também aos corações dos seus que a ressurreição do Senhor Jesus Cristo era tão real como o seu nascimento, paixão e morte.
Os santos apóstolos e todos os discípulos ficaram muito perturbados com a tragédia da cruz e hesitavam em acreditar na ressurreição. De tal modo eles foram fortalecidos pela evidência da verdade que, quando o Senhor subiu aos céus, não experimentaram tristeza alguma, mas, pelo contrário, encheram-se de grande alegria.
Na verdade, era grande e indizível o motivo de sua alegria: diante daquela santa multidão, contemplavam a natureza humana que subia a uma dignidade superior à de todas as criaturas celestes, ultrapassando até mesmo as hierarquias dos anjos e a altura sublime dos arcanjos. Deste modo, foi recebida junto do eterno Pai, que a associou ao trono de sua glória, depois de tê-la unido na pessoa do Filho à sua própria natureza divina.

domingo, 14 de abril de 2024

A celebração da Eucaristia


Da Primeira Apologia a favor dos cristãos, de São Justino, mártir

(Cap.66-67: PG 6,427-431)
(Séc. I)

A celebração da Eucaristia

A ninguém é permitido participar da Eucaristia, a não ser àquele que, admitindo como verdadeiros os nossos ensinamentos e tendo sido purificado pelo batismo para a remissão dos pecados e a regeneração, leve uma vida como Cristo ensinou. Pois não é pão ou vinho comum o que recebemos. Com efeito, do mesmo modo como Jesus Cristo, nosso salvador, se fez homem pela Palavra de Deus e assumiu a carne e o sangue para a nossa salvação, também nos foi ensinado que o alimento sobre o qual foi pronunciada a ação de graças com as mesmas palavras de Cristo e, depois de transformado, nutre nossa carne e nosso sangue, é a própria carne e o sangue de Jesus que se encarnou.

Os apóstolos, em suas memórias que chamamos evangelhos, nos transmitiram a recomendação que Jesus lhes fizera. Tendo ele tomado o pão e dado graças, disse: Fazei isto em memória de mim. Isto é o meu corpo (Lc 22,19; Mc 14,22); e tomando igualmente o cálice e dando graças, disse: Este é o meu sangue (Mc 14,24), e os deu somente a eles. Desde então, nunca mais deixamos de recordar estas coisas entre nós. Com o que possuímos, socorremos a todos os necessitados e estamos sempre unidos uns aos outros. E por todas as coisas com que nos alimentamos, bendizemos o Criador do universo, por seu Filho Jesus Cristo e pelo Espírito Santo.

No chamado dia do Sol, reúnem-se em um mesmo lugar todos os que moram nas cidades ou nos campos. Lêem-se as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas, na medida em que o tempo permite. Terminada a leitura, aquele que preside toma a palavra para aconselhar e exortar os presentes à imitação de tão sublimes ensinamentos.

Depois, levantamo-nos todos juntos e elevamos as nossas preces; como já dissemos acima, ao acabarmos de rezar, apresentam-se pão, vinho e água.Então o que preside eleva ao céu, com todo o seu fervor, preces e ações de graças, e o povo aclama: Amém. Em seguida, faz-se entre os presentes a distribuição e a partilha dos alimentos que foram eucaristizados, que são também enviados aos ausentes por meio dos diáconos.

Os que possuem muitos bens dão livremente o que lhes agrada. O que se recolhe é colocado à disposição do que preside. Este socorre os órfãos, as viúvas e os que, por doença ou qualquer outro motivo se acham em dificuldade, bem como os prisioneiros e os hóspedes que chegam de viagem; numa palavra, ele assume o encargo de todos os necessitados.

Reunimo-nos todos no dia do Sol, não só porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, mas também porque neste mesmo dia Jesus Cristo, nosso salvador, ressuscitou dos mortos. Crucificaram-no na véspera do dia de Saturno; e no dia seguinte a este, ou seja, no dia do Sol,aparecendo aos seus apóstolos e discípulos, ensinou-lhes tudo o que também nós vos propusemos como digno de consideração.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

É preciosa e vivificante a cruz de Cristo


Dos Sermões de São Teodoro Estudita

(Oratio inadorationem crucis: PG 99,691-694.695.698-699)
(Séc.IX)

É preciosa e vivificante a cruz de Cristo

Ó preciosíssimo dom da cruz! Vede o esplendor de sua forma! Não mostra apenas uma imagem mesclada de bem e de mal,
como aquela árvore do Paraíso, mas totalmente bela e magnífica para a vista e o paladar.
É uma árvore que não gera a morte, mas a vida; que não difunde as trevas, mas a luz; que não expulsa do Paraíso, mas nele introduz. A esta árvore subiu Cristo, como um rei que sobe no carro triunfal, e venceu o demônio, detentor do poder da morte, para libertar o gênero humano da escravidão do tirano.
Sobre esta árvore o Senhor, como um valente guerreiro,ferido durante o combate em suas mãos, nos pés e em seu lado divino, curou as chagas dos nossos pecados, isto é, curou a nossa natureza ferida pela serpente venenosa.
Se antes, pela árvore, fomos mortos, agora, pela árvore, recuperamos a vida; se antes, pela árvore, fomos enganados, agora, pela árvore, repelimos a astúcia da serpente. Sem dúvida, novas e extraordinárias mudanças! Em vez da morte, nos é dada a vida; em lugar da corrupção, a incorrupção; da vergonha, a glória.
Não é sem razão que o Apóstolo exclama: Quanto a mim, que eu me glorie somente na cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele, o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o mundo (Gl 6,14). Pois aquela suprema sabedoria que floresceu na cruz, desmascarou a presunção e a arrogante loucura da sabedoria do mundo; toda a espécie de bens maravilhosos que brotaram da cruz, extirparam inteiramente a raiz da maldade e do pecado.
Já desde o começo do mundo, houve figuras e alegorias desta árvore que anunciavam e Indicavam realidades verdadeiramente admiráveis. Repara bem, tu que sentes um grande desejo de saber:
Não é verdade que Noé, com seus filhos e esposas, e os animais de toda espécie, escapou da morte do dilúvio, por ordem de Deus, numa frágil arca de madeira?
E o que dizer da vara de Moisés? Não era figura da cruz quando transformou a água em sangue, quando devorou as falsas serpentes dos magos, quando separou as águas do mar como poder do seu golpe, quando as fez voltar ao seu curso normal, afogando os inimigos e salvando aqueles que eram o povo de Deus?
Símbolo da cruz foi também a vara de Aarão, quando se cobriu de folhas num só dia para indicar quem devia ser o sacerdote legítimo.
Abraão também prenunciou a cruz, quando colocou seu filho amarrado sobre o feixe de lenha. Pela cruz, a morte foi destruída e Adão recuperou a vida.
Pela cruz, todos os apóstolos foram glorificados, todos os mártires coroados e todos os que creem, santificados. Pela cruz, fomos revestidos de Cristo ao nos despojarmos do homem velho. Pela cruz, nós, ovelhas de Cristo, fomos reunidos num só rebanho e destinados às moradas celestes.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Combatendo o bom combate


Das Cartas de São Cipriano, bispo e mártir

(Ep. 58,8-9.11: CSEL 3,663-666)
(Séc. III)

Combatendo o bom combate

Enquanto combatemos o bom combate da fé, Deus, seus anjos e o próprio Cristo nos contemplam. Que glória imensa e que felicidade lutarmos na presença de Deus e sermos coroados por Cristo Juiz! Armemo-nos, queridos irmãos, de coragem e fortaleza, e preparemo-nos para a luta com pureza de espírito, fé inquebrantável e generosa confiança. Avance o exército de Deus para a batalha que nos foi proposta. O santo Apóstolo ensina como nos devemos armar e preparar: Cingi os vossos rins com a verdade, revesti-vos com a couraça da justiça e calçai os vossos pés com a prontidão em anunciar o evangelho da paz. Tomai o escudo da fé, o qual vos permitirá apagar todas as flechas ardentes do Maligno. Tomai, enfim, o capacete da salvação e o gládio do espírito, isto é, a Palavra de Deus (Ef 6,14-17).
Tomemos estas armas, protejamo-nos com estas defesas espirituais e celestes, para podermos resistir e vencer os assaltos do demônio no dia do combate.
Revistamo-nos com a couraça da justiça. Com ela nosso peito estará protegido e seguro contra as flechas do inimigo. Estejam nossos pés calçados e guarnecidos com a doutrina evangélica. Assim, quando pisarmos e esmagarmos a serpente, não seremos mordidos nem vencidos.
Seguremos com firmeza o escudo da fé, para que nele seja destruído tudo quanto o inimigo lançar contra esta proteção.
Tomemos também o capacete espiritual para proteger nossa cabeça; com ele, os ouvidos não escutarão os anúncios da maldade, os olhos não verão as imagens detestáveis, a fronte conservará incólume o sinal de Deus e a boca proclamará vitoriosamente a Cristo, seu Senhor.
Armemos finalmente nossa mão direita com a espada espiritual para rejeitar com determinação os sacrifícios infames; e, lembrando-nos da eucaristia, recebamos o corpo do Senhor e vivamos em união com ele, esperando receber mais tarde, das mãos do mesmo Senhor, o prêmio das coroas celestes.
Que estas realidades, queridos irmãos, fiquem bem gravadas em vossos corações. Se o dia da perseguição nos encontrar nestes pensamentos e meditações, o soldado de Cristo, instruído por suas ordens e preceitos, não temerá o combate, mas estará pronto para a coroa.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

O sacramento da nossa reconciliação


Das Cartas de São Leão Magno, papa

(Epist. 28, ad Flavianum,3-4: PL 54,763-767)
(Séc.V)

O sacramento da nossa reconciliação

A humildade foi assumida pela majestade, a fraqueza, pela força, a mortalidade, pela eternidade. Para saldar a dívida de nossa condição humana, a natureza impassível uniu-se à natureza passível. Deste modo, como convinha à nossa recuperação, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, podia submeter-se à morte através de sua natureza humana e permanecer imune em sua natureza divina.
Por conseguinte, numa natureza perfeita e integral de verdadeiro homem, nasceu o verdadeiro Deus, perfeito na sua divindade, perfeito na nossa humanidade. Por “nossa humanidade” queremos significar a natureza que o Criador desde o início formou em nós, e que assumiu para renová-la. Mas daquelas coisas que o Sedutor trouxe, e o homem enganado aceitou, não há nenhum vestígio no Salvador; nem pelo fato de se ter irmanado na comunhão da fragilidade humana, tornou-se participante dos nossos delitos.
Assumiu a condição de escravo, sem mancha de pecado, engrandecendo o humano, sem diminuir o divino. Porque o aniquilamento, pelo qual o invisível se tornou visível, e o Criador de tudo quis ser um dos mortais, foi uma condescendência da sua misericórdia, não uma falha do seu poder. Por conseguinte, aquele que, na sua condição divina se fez homem, assumindo a condição de escravo, se fez homem.
Entrou, portanto, o Filho de Deus neste mundo tão pequeno, descendo do trono celeste, mas sem deixar a glória do Pai; é gerado e nasce de modo totalmente novo. De modo novo porque, sendo invisível em si mesmo, torna-se visível como nós; incompreensível, quis ser compreendido; existindo antes dos tempos, começou a existir no tempo. O Senhor do universo assume a condição de escravo, envolvendo em sombra a imensidão de sua majestade; o Deus impassível não recusou ser homem passível, o imortal submeteu-se às leis da morte.
Aquele que é verdadeiro Deus, é também verdadeiro homem; e nesta unidade nada há de falso, porque nele é perfeita respectivamente tanto a humanidade do homem como a grandeza de Deus. Nem Deus sofre mudança com esta condescendência da sua misericórdia nem o homem é destruído com sua elevação a tão alta dignidade. Cada natureza realiza, em comunhão com a outra, aquilo que lhe é próprio: o Verbo realiza o que é próprio do Verbo, e a carne realiza o que é próprio da carne.
A natureza divina resplandece nos milagres, a humana, sucumbe aos sofrimentos. E como o Verbo não renuncia à igualdade da glória do Pai, também a carne não deixa a natureza de nossa raça. É um só e o mesmo – não nos cansaremos de repetir – verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro Filho do homem. É Deus, porque no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus: e o Verbo era Deus. É homem, porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1.14).

domingo, 7 de abril de 2024

A paz esteja convosco!

 


Hoje celebramos a festa da Divina Misericórdia. Entramos na segunda semana da Páscoa. 

A primeira leitura (At 4,32-35) nos faz um relato de como vivam os cristãos da primeira hora. Era um só coração, não havia divisões; era uma só alma, ou seja um só sentimento; não colocavam nos bens materiais a sua fé, tudo era posto em comum; não havia necessitados, pois a cada um era dado o que era necessário para sua vida. Isso é misericórdia, dar a cada um o necessário para a vida, sem acúmulos. 

Na segunda leitura, João nos mostra quem são os verdadeiros filhos de Deus, e como deve ser a postura dos que seguem Jesus.

O evangelho nos remete a algumas pequenas cenas dentro da sua narrativa.

Primeiro, Jesus aparece aos discípulos no anoitecer. A imagem do anoitecer é recorrente nas narrativas da aparição pós páscoa. Lembremos que Jesus disse que ele era a Luz. Jesus é a luz que ilumina as escuridões de nossa vida. Outra característica, as portas estão fechadas, ou seja, o medo nos faz nos fecharmos em nós mesmos. Mas, na nova vida pascal não há barreiras. Para Deus nada é impossível. 

Segundo, Jesus disse: "A paz esteja convosco". Somente a paz que vem de Deus pode romper com as escuridões e os medos da vida. A paz não apaga as marcas da tortura. A paz dá novo significado ao flagelo passado. 

Terceiro, o Espírito Santo. É ele quem vai conduzir a Igreja. É ele que vai iluminar a vida da comunidade cristã, a Igreja. É ele quem nos dará a unidade necessária para que não haja necessitados nos meio de nós. É ele quem nos fará ter um só coração, uma só alma.

O Espírito Santo é aquele que nos permite dizer "perdoai as minhas ofensas, como eu perdoo aqueles que me ofendem". Não basta pedir perdão pelos próprios pecados, é preciso perdoar os pecados cometidos contra nós mesmos.

Quarto, crer sem ter visto. Um dos discípulos não estava presente, Tomé. Ele duvida dos outros. É mais radical ainda, "se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei". Quantas pessoas deixaram de crer porque não viram? Quantas pessoas precisam ver para crer? Por isso, é preciso sermos uma Igreja sem divisões, com um único espírito, e de um só coração. 

Hoje, na Festa da Misericórdia, sejamos unidos ao Papa Francisco, e aos seus ensinamentos. Que não haja necessitados no meio de nós. Que não haja concentração de riquezas nas mãos de poucos. Que todos tenham comida, água, roupa, sejam tratados com dignidade nos hospitais e presídios. E que cessem as guerras, conflitos e morte.

A misericórdia não está relacionada com indulgência plenária, mas sim e sermos missionários de uma nova humanidade, da Civilização do Amor.

sábado, 30 de março de 2024

A descida do Senhor à mansão dos mortos


De uma antiga Homilia no grande Sábado Santo

(PG43,439.451.462-463)
(Séc.IV)

A descida do Senhor à mansão dos mortos

Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos.

Ele vai antes de tudo à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte. Deus e seu Filho vão ao encontro de Adão e Eva cativos, agora libertos dos sofrimentos.

O Senhor entrou onde eles estavam, levando em suas mãos a arma da cruz vitoriosa. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, exclamou para todos os demais, batendo no peito e cheio de admiração: “O meu Senhor está no meio de nós”. E Cristo respondeu a Adão: “E com teu espírito”. E tomando-o pela mão, disse: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará.

Eu sou o teu Deus, que por tua causa me tornei teu filho; por ti e por aqueles que nasceram de ti, agora digo, e com todo o meu poder, ordeno aos que estavam na prisão: ‘Saí!’; e aos que jaziam nas trevas: ‘Vinde para a luz!’; e aos entorpecidos: ‘Levantai-vos!’

Eu te ordeno: Acorda, tu que dormes, porque não te criei para permaneceres na mansão dos mortos. Levanta-te dentre os mortos; eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te, ó minha imagem, tu que foste criado à minha semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em mim e eu em ti, somos uma só e indivisível pessoa.

Por ti, eu, o teu Deus, me tornei teu filho; por ti, eu, o Senhor, tomei tua condição de escravo. Por ti, eu, que habito no mais alto dos céus, desci à terra e fui até mesmo sepultado debaixo da terra; por ti, feito homem, tornei-me como alguém sem apoio, abandonado entre os mortos. Por ti, que deixaste o jardim do paraíso, ao sair de um jardim fui entregue aos judeus e num jardim, crucificado.

Vê em meu rosto os escarros que por ti recebi, para restituir-te o sopro da vida original. Vê na minha face as bofetadas que levei para restaurar, conforme à minha imagem, tua beleza corrompida.

Vê em minhas costas as marcas dos açoites que suportei por ti para retirar de teus ombros o peso dos pecados. Vê minhas mãos fortemente pregadas à árvore da cruz, por causa de ti, como outrora estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso. Adormeci na cruz e por tua causa a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado. Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança que estava dirigida contra ti.

Levanta-te, vamos daqui. O inimigo te expulsou da terra do paraíso; eu, porém, já não te coloco no paraíso mas num trono celeste. O inimigo afastou de ti a árvore, símbolo da vida; eu, porém, que sou a vida, estou agora junto de ti. Constituí anjos que, como servos, te guardassem; ordeno agora que eles te adorem como Deus, embora não sejas Deus.

Está preparado o trono dos querubins, prontos e a postos os mensageiros, construído o leito nupcial, preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados, abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde toda a eternidade”.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Quão poucos são os que amam a cruz de Jesus

 


O amor à cruz.

Uma das práticas devocionais da sexta-feira santa é a adoração à Cruz.

O livro segundo, da Imitação de Cristo, no capítulo 11, nos recorda “quão poucos são os que amam a cruz de Jesus”. A seguir, transcrevo o texto.

1. Muitos encontram Jesus, agora apreciadores de seu reino celestial; mas poucos que queiram levar a sua cruz. Tem muitos sequiosos de consolação, mas poucos da tribulação; muitos companheiros à sua mesa, mas poucos de sua abstinência. Todos querem gozar com ele, poucos sofrer por ele alguma coisa. Muitos seguem a Jesus até ao partir do pão, poucos até beber o cálice da paixão. Muitos veneram seus milagres, mas poucos abraçam a ignomínia da cruz. Muitos amam a Jesus, enquanto não encontram adversidades. Muitos O louvam e bendizem, enquanto recebem d’Ele algumas consolações; se, porém, Jesus se oculta e por um pouco os deixa, caem logo em queixumes e desânimo excessivo.

2. Aqueles, porém, que amam a Jesus por Jesus mesmo e não por própria satisfação, tanto O louvam nas tribulações e angústias, como na maior consolação. E posto que nunca lhes fosse dada a consolação, sempre O louvariam e Lhe dariam graças.

3. Oh! Quanto pode o amor puro de Jesus, sem mistura de interesse ou amor-próprio! Não são porventura mercenários os que andam sempre em busca de consolações? Não se amam mais a si do que a Cristo os que estão sempre cuidando de seus cômodos e interesses? Onde se achará quem queira servir desinteressadamente a Deus?

4. É raro achar um homem tão espiritual que esteja desapegado de tudo. Pois o verdadeiro pobre de espírito e desprendido de toda criatura - quem o descobrirá? Tesouro precioso que é necessário buscar nos confins do mundo (Prov 31,10). Se o homem der toda a fortuna, não é nada. E se fizer grande penitência, ainda é pouco. Compreenda embora todas as ciências, ainda estão muito longe. E se tiver grande virtude de devoção ardente, muito ainda lhe falta, a saber: uma coisa que lhe é sumamente necessária. Que coisa será esta? Que, deixado tudo, se deixa a si mesmo e saia totalmente de si, sem reservar amor-próprio algum, e, depois de feito tudo que soube fazer, reconheça que nada fez.

5. Não tenha em grande conta o pouco que nele possa ser avaliado por grande: antes, confesse sinceramente que é um servo inútil, como nos ensina a Verdade. Quando tiverdes cumprido tudo que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis (Lc 17,10). Então, sim, o homem poderá chamar-se verdadeiramente pobre de espírito e dizer com o profeta: Sou pobre e só neste mundo (Sl 24,16). Entretanto, ninguém é mais poderoso, ninguém mais livre que aquele que sabe deixar-se a si e a todas as coisas e colocar-se no último lugar.


O poder do sangue de Cristo


Das Catequeses de São João Crisóstomo, bispo

(Cat. 3,13-19: SCh 50,174-177)
(Séc.IV)

O poder do sangue de Cristo

Queres conhecer o poder do sangue de Cristo? Voltemos às figuras que o profetizaram e recordemos a narrativa do Antigo Testamento: Imolai, disse Moisés, um cordeiro de um ano e marcai as portas com o seu sangue (cf. Ex 12,6-7). Que dizes, Moisés? O sangue de um cordeiro tem poder para libertar o homem dotado de razão? É claro que não, responde ele, não porque é sangue, mas por ser figura do sangue do Senhor. Se agora o inimigo, ao invés do sangue simbólico aspergido nas portas, vir brilhar nos lábios dos fiéis, portas do templo dedicado a Cristo, o sangue verdadeiro, fugirá ainda mais para longe.

Queres compreender mais profundamente o poder deste sangue? Repara de onde começou a correr e de que fonte brotou. Começou a brotar da própria cruz, e a sua origem foi o lado do Senhor. Estando Jesus já morto e ainda pregado na cruz, diz o evangelista, um soldado aproximou-se, feriu-lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu água e sangue: a água, como símbolo do batismo; o sangue, como símbolo da eucaristia. O soldado, traspassando-lhe o lado, abriu uma brecha na parede do templo santo, e eu, encontrando um enorme tesouro, alegro-me por ter achado riquezas extraordinárias. Assim aconteceu com este cordeiro. Os judeus mataram um cordeiro e eu recebi o fruto do sacrifício.

De seu lado saiu sangue e água (Jo 19,34). Não quero, querido ouvinte, que trates com superficialidade o segredo de tão grande mistério. Falta-me ainda explicar-te outro significado místico e profundo. Disse que esta água e este sangue são símbolos do batismo e da eucaristia. Foi destes sacramentos que nasceu a santa Igreja, pelo banho da regeneração e pela renovação no Espírito Santo, isto é, pelo batismo e pela eucaristia que brotaram do lado de Cristo. Pois Cristo formou a Igreja de seu lado traspassado, assim como do lado de Adão foi formada Eva, sua esposa.

Por esta razão, a Sagrada Escritura, falando do primeiro homem, usa a expressão osso dos meus ossos e carne da minha carne (Gn 2,23), que São Paulo refere, aludindo ao lado de Cristo. Pois assim como Deus formou a mulher do lado do homem, também Cristo, de seu lado, nos deu a água e o sangue para que surgisse a Igreja. E assim como Deus abriu o lado de Adão enquanto ele dormia, também Cristo nos deu a água e o sangue durante o sono de sua morte.

Vede como Cristo se uniu à sua esposa, vede com que alimento nos sacia. Do mesmo alimento nos faz nascer e nos nutre. Assim como a mulher, impulsionada pelo amor natural, alimenta com o próprio leite e o próprio sangue o filho que deu à luz, também Cristo alimenta sempre com o seu sangue aqueles a quem deu o novo nascimento.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Cristo é fiel e tudo providencia

Das Cartas de São João de Deus, religioso

(Archiv. gen. Ord. Hospit., Quaderno: De las cartas...,
ffº 23v-24r:27rv; O. Marcos, Cartas y escritos de Nuestro Glorioso Padre San Juan de Dios, Madrid, 1935, pp. 18-19; 48-50)
(Séc. XVI)

 Cristo é fiel e tudo providencia

Se considerarmos atentamente a misericórdia de Deus, nunca deixaremos de fazer o bem de que formos capazes. Com efeito, se damos aos pobres, por amor de Deus, aquilo que ele próprio nos dá, promete-nos o cêntuplo na felicidade eterna. Que paga generosa, que lucro feliz! Quem não daria a este excelente mercador tudo o que possui, se ele cuida de nossos interesses e, com braços abertos, pede insistentemente que nos convertamos a ele, que choremos os nossos pecados, e tenhamos caridade para conosco e para com o próximo? Porque assim como a água apaga o fogo, caridade apaga o pecado.
Vêm aqui tantos pobres, que até eu me espanto como é possível sustentar a todos; mas Jesus Cristo tudo providencia e a todos alimenta. Vêm muitos pobres à casa de Deus, porque a cidade de Granada é grande e muito fria, sobretudo agora que estamos no inverno. Entre todos – doentes e sadios, gente de serviço e peregrinos – há aqui mais de cento e dez pessoas. Como esta casa é geral, recebe doentes de toda espécie e condição: aleijados, mancos, leprosos, mudos, loucos, paralíticos, ulcerosos, alguns já muito idosos e outros ainda muito crianças. E ainda inúmeros peregrinos e viajantes, que aqui chegam e encontram fogo, água, sal e vasilhas para cozinhar os alimentos. De tudo isto não se recebe pagamento algum; Cristo, porém, a tudo provê.
Por esse motivo, vivo endividado e prisioneiro por amor de Jesus Cristo. Vendo-me tão sobrecarregado de dívidas, já nem ouso sair de casa por causa dos débitos que me prendem. Mas vendo tantos pobres e tantos irmãos e próximos meus sofrer para além de suas forças e serem oprimidos por tantas aflições no corpo ou na alma, sinto profunda tristeza por não poder socorrê-los. Todavia, confio em Cristo, que conhece meu coração. Por isso digo: Maldito o homem que confia no homem (Jr 17,5), e não somente em Cristo; porque dos homens tu hás de ser separado, quer queiras ou não; mas Cristo é fiel e permanece para sempre. Cristo tudo providencia. A ele demos graças sem cessar. Amém.

terça-feira, 5 de março de 2024

O que a oração pede, o jejum o alcançae a misericórdia o recebe


Dos Sermões de São Pedro Crisólogo, bispo
(Sermo 43: PL 52,320.322)
(Séc.IV)

O que a oração pede, o jejum o alcançae a misericórdia o recebe

Há três coisas, meus irmãos, três coisas que mantêm a fé, dão firmeza à devoção e perseverança à virtude. São elas a oração, o jejum e a misericórdia. O que a oração pede, o jejum alcança e a misericórdia recebe. Oração, misericórdia, jejum: três coisas que são uma só e se vivificam reciprocamente. O jejum é a alma da oração e a misericórdia dá vida ao jejum. Ninguém queira separar estas três coisas, pois são inseparáveis. Quem pratica somente uma delas ou não pratica todas simultaneamente, é como se nada fizesse. Por conseguinte, quem ora também jejue; e quem jejua, pratique a misericórdia. Quem deseja ser atendido nas suas orações, atenda as súplicas de quem lhe pede; pois aquele que não fecha seus ouvidos às súplicas alheias, abre os ouvidos de Deus às suas próprias súplicas.
Quem jejua, pense no sentido do jejum; seja sensível à fome dos outros quem deseja que Deus seja sensível à sua; seja misericordioso quem espera alcançar misericórdia; quem pede compaixão, também se compadeça; quem quer ser ajudado, ajude os outros. Muito mal suplica quem nega aos outros aquilo que pede para si.
Homem, sê para ti mesmo a medida da misericórdia;deste modo alcançarás misericórdia como quiseres, quanto quiseres e com a rapidez que quiseres; basta que te compadeças dos outros com generosidade e presteza. Peçamos, portanto, destas três virtudes – oração,jejum, misericórdia – uma única força mediadora junto de Deus em nosso favor; sejam para nós uma única defesa, uma única oração sob três formas distintas.
Reconquistemos pelo jejum o que perdemos por não saber apreciá-lo; imolemos nossas almas pelo jejum, pois nada melhor podemos oferecer a Deus como ensina o Profeta: Sacrifício agradável a Deus é um espírito penitente; Deus não despreza um coração arrependido e humilhado (cf. Sl 50,19). Homem, oferece a Deus a tua alma, oferece a oblação do jejum, para que seja uma oferenda pura, um sacrifício santo, uma vítima viva que ao mesmo tempo permanece em ti e é oferecida a Deus. Quem não dá isto a Deus não tem desculpa, porque todos podem se oferecer a si mesmos.
Mas, para que esta oferta seja aceita por Deus, a misericórdia deve acompanhá-la; o jejum só dá frutos se for regado pela misericórdia, pois a aridez da misericórdia faz secar o jejum. O que a chuva é para a terra, é a misericórdia para o jejum. Por mais que cultive o coração, purifique o corpo, extirpe os maus costumes e semeie as virtudes, o que jejua não colherá frutos se não abrir as torrentes da misericórdia. Tu que jejuas, não esqueças que fica em jejum o teu campo se jejua a tua misericórdia; pelo contrário, a liberalidade da tua misericórdia encherá de bens os teus celeiros. Portanto, ó homem, para que não venhas a perder por ter guardado para ti, distribui aos outros para que venhas a recolher; dá a ti mesmo, dando aos pobres, porque o que deixares de dar aos outros, também tu não o possuirás.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A purificação espiritual por meio do jejum e da misericórdia


Dos Sermões de São Leão Magno, papa

(Sermo 6 de Quadragesima, 1-2: PL 54,285-287)
(Séc. V)

A purificação espiritual por meio do jejum e da misericórdia

Em todo tempo, amados filhos, a terra está repleta da misericórdia do Senhor (Sl 32,5). À própria natureza é para todo fiel uma lição que o ensina a louvar a Deus, pois o céu, a terra, o mar e tudo o que neles existe proclamam a bondade e a onipotência de seu Criador; e a admirável beleza dos elementos postos a nosso serviço requer da criatura racional uma justa ação de graças.

O retorno, porém, desses dias.que os mistérios da salvação humana marcaram de modo mais especial e que precedem imediatamente a festa da Páscoa, exige que nos preparemos com maior cuidado por meio de uma purificação espiritual.

Na verdade, é próprio da solenidade pascal que a Igreja inteira se alegre com o perdão dos pecados. Não é apenas nos que renascem pelo santo batismo que ele se realiza, mas também naqueles que desde há muito são contados entre os filhos adotivos.

É, sem dúvida, o banho da regeneração que nos torna criaturas novas; mas todos têm necessidade de se renovar a cada dia para evitarmos a ferrugem inerente à nossa condição mortal, e não há ninguém que não deva se esforçar para progredir no caminho da perfeição; por isso, todos sem exceção, devemos empenhar-nos para que, no dia da redenção, pessoa alguma seja ainda encontrada nos vícios do passado.

Por conseguinte, amados filhos, aquilo que cada cristão deve praticar em todo tempo, deve praticá-lo agora com maior zelo e piedade, para cumprir a prescrição, que remonta aos apóstolos, de jejuar quarenta dias, não somente reduzindo os alimentos, mas sobretudo abstendo-se do pecado.

A estes santos e razoáveis jejuns, nada virá juntar-se com maior proveito do que as esmolas. Sob o nome de obras de misericórdia, incluem-se muitas e louváveis ações de bondade; graças a elas, todos os fiéis podem manifestar igualmente os seus sentimentos, por mais diversos que sejam os recursos de cada um.

Se verdadeiramente amamos a Deus e ao próximo, nenhum obstáculo impedirá nossa boa vontade. Quando os anjos cantaram: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14), proclamavam bem-aventurado, não só pela virtude da benevolência mas também pelo dom da paz, todo aquele que, por amor, se compadece do sofrimento alheio.

São inúmeras as obras de misericórdia, o que permite aos verdadeiros cristãos tomar parte na distribuição de esmolas, sejam eles ricos, possuidores de grandes bens, ou pobres, sem muitos recursos. Apesar de nem todos poderem ser iguais na possibilidade de dar, todos podem sê-lo na boa vontade que manifestam.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Vicente venceu naquele por quem o mundo foi vencido


Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo

(Sermo 276,1-2: PL 38,1256)
(Séc. V)

 Vicente venceu naquele
por quem o mundo foi vencido

A vós foi dado por Cristo não apenas crerdes nele, mas também sofrerdes por causa dele (Fl 1,29), diz a Escritura.
O levita Vicente recebera e possuía um e outro dom. Se não tivesse recebido, como os haveria de possuir? Tinha confiança na palavra, tinha coragem no sofrimento.
Ninguém, portanto, se envaideça de sua força interior, quando fala; ninguém confie nas próprias forças, quando é tentado; porque se falamos bem e com prudência, é de Deus que vem nossa sabedoria e, se suportamos os males com firmeza, é dele que vem a nossa força.
Lembrai-vos de como, no Evangelho, Cristo Senhor adverte os que são seus; lembrai-vos do Rei dos mártires instruindo nas armas espirituais os seus exércitos, exortando-os para a guerra, dando-lhes ajuda e prometendo a recompensa. Ele, que disse aos discípulos: No mundo, tereis tribulações, logo acrescenta, a fim de consolar os medrosos: Mas tende coragem! Eu venci o mundo (Jo 16,33).
Por que então nos admiramos, caríssimos, se Vicente venceu naquele por quem o mundo foi vencido? No mundo, tereis tribulações, diz o Senhor. O mundo persegue, mas não triunfa; ataca, mas não vence. O mundo conduz uma dupla batalha contra os soldados de Cristo: afaga-os para enganá-los, aterroriza-os para quebrá-los. Que o nosso bem-estar não nos preocupe, não nos assuste a maldade alheia, e o mundo está vencido.
Cristo acorre a ambos os combates e o cristão não é vencido. Se neste martírio se considera a capacidade humana para suportá-lo, o fato torna-se incompreensível; mas se nele se reconhece o poder divino, nada há que admirar.
Era tanta a crueldade que afligia o corpo do mártir, e tanta a serenidade que transparecia de sua voz; era tamanha a ferocidade dos suplícios que maltratavam os seus membros, e tamanha a firmeza que ressoava nas suas palavras que, de algum modo maravilhoso, enquanto Vicente suportava o martírio, julgávamos ser torturada outra pessoa diferente da que falava.
E era realmente assim, irmãos, era assim mesmo: era outro que falava. No Evangelho, Cristo prometeu também isto a suas testemunhas, ao prepará-las para tais combates. Falou deste modo: Não fiqueis preocupados como falar ou o que dizer. Com efeito, não sereis vós que havereis de falar, mas sim o Espírito do vosso Pai é que falará através de vós. (Mt 10,19-20). Por conseguinte, a carne sofria e o Espírito falava; e enquanto o Espírito falava, não apenas era vencida a impiedade, mas também a fraqueza era confortada.